A gestão pública e a Ignorância paralisante.
Por Abdon C. Marinho.
O AMIGO e sócio, Welger Freire, acordou preocupado com a saúde da filha. Esperava o resultado dos exames médicos que mandara realizar no dia anterior. Levantou-se cedo (como de costume) e logo acessou o site da clínica para verificar os exames. Tudo perfeito, exceto por uma inconformidade. Saiu do quarto apavorado e já foi prevenindo a esposa: — Meu bem, se prepare, ela está com influenza A!
A esposa, em pânico, começou logo a chorar e ligou para a mãe para passar a “triste” notícia. Era choro de lá, choro de cá; preparativos para levar a infanta para o hospital; até que ocorreu ao sócio a ideia de consultar o filho que é médico e faz residência no Rio Grande do Sul.
— Meu filho, recebi os exames de sua irmã e veio tudo bem, só tem um problema: ela está com influenza A.
Do outro lado da linha o filho respondeu-lhe: — ô pai, influenza A é apenas gripe comum.
Foi aí que ele caiu em si.
Naquela mesma manhã, no escritório, nós contávamos desse falso surto de diagnóstico terminal que o acometeu logo que levantou, enquanto caiamos na gargalhada.
Dias desses, por ocasião do Encontro Nacional de Compras Públicas – onde me fiz presente não na condição de advogado, mas de empresário do setor de educação –, conversava com alguns membros dos setores de licitação, pregoeiros e até gestores sobre umas inquietações.
A principal delas é a demora para os municípios “pegarem”. Já tendo avançado o ano, muitos ainda não “iniciaram” o novo mandato; não avançaram nas licitações, nas compras necessárias ao funcionamento básico, etc.
Em alguns municípios, aliás, o ano letivo começou com singular atraso e em alguns sequer iniciou totalmente por falta de condições objetivas: reformas que não foram concluídas, material didático que não foi adquirido, professores e/ou servidores que não foram contratados, e diversos outros entraves.
Mesmo em municípios onde os gestores apenas tiveram seus mandatos renovados, a “paralisia” se faz presente.
Nas interações que fiz, percebi que parte da inércia é devida à nova lei de licitações, que, apesar de não ser tão nova assim (Nova Lei de Licitações e Contratos, Lei nº 14.133/2021), é de 2021, mas só agora está sendo efetivamente aplicada na maioria dos municípios brasileiros.
Em muitos municípios, sobretudo naqueles em que houve troca de comando de gestores, cargos previstos na nova lei não foram criados e os próprios departamentos de licitações tiveram que ser readequados para a nova realidade das contratações públicas.
Mesmo pessoas já experientes no segmento de licitações e contratos têm “patinado” e dado celeridade aos procedimentos, muitos, inclusive, por receio em relação à nova legislação.
A situação mostra-se tão inusitada que, passados meses desde a posse, contratações que podem ser efetivadas através de inexigibilidade de licitação não foram feitas, deixando profissionais que já deveriam estar trabalhando e recebendo desde o início da gestão “a verem navios”.
O sócio Welger Freire costuma dizer que ninguém se defende da lei.
No caso da “nova” Lei de Licitações, ao meu sentir, ela tornou bem mais fácil determinados procedimentos que deveriam ajudar os entes públicos, dando-lhes celeridade na gestão.
Quer me parecer, entretanto, que muitos gestores e/ou profissionais operadores do direito estão receosos da utilização dos procedimentos legais estatuídos na legislação devido ao receio dos “tribunais das redes sociais e veículos de comunicação” e até mesmo das possíveis interpretações dadas pelos organismos de controle, como o Ministério Público, que atua como fiscal da lei ou dos tribunais de contas.
Um exemplo claro disso é o escarcéu que muitos fazem diante de uma inexigibilidade de licitação.
Ora, a inexigibilidade é um procedimento previsto na legislação, não é algo “fora da lei”, muito pelo contrário, encontra-se lá devidamente estabelecido e é uma das ferramentas que existem para garantir a celeridade dos processos administrativos.
Aos operadores do certame cabe apenas instrumentalizar e fundamentar a opção pela inexigibilidade de licitação.
Muito embora gestores e demais responsáveis pelos certames saibam disso, ao optarem por fazerem uma inexigibilidade agem como se estivessem fazendo algo fora da lei, cometendo um crime ou coisa pior, quando na verdade estão se utilizando de um recurso legítimo instituído para ser utilizado sempre que se enquadrar na previsão legal.
O mesmo ocorre quando fazem uma adesão a alguma ata de registro de preço, com a contratação direta, etc.
Verificada a legitimidade do instrumento, não tem razão nenhuma para recusar sua utilização. Claro que sempre se deve examinar com uma lupa para evitar quaisquer dúvidas e problemas futuros.
Entretanto, não é razoável que a administração pública seja paralisada por receio dos “tribunais da mídia”.
O gestor público precisa ter a serenidade suficiente para não ceder, em detrimento do interesse da população, a um clima de instabilidade externa causado, na maioria das vezes por pessoas que querem vender escândalos em troca de vantagens indevidas ou por receio dos adversários.
A baliza da administração pública é a lei, logo não é legítimo que se deixe de utilizar dos mecanismos legais com medo do que dirá o “tribunal da mídia” ou a pauta dos opositores.
Não se faz gestão pública com covardia ou com medo do que pode dizer a mídia ou os adversários. Se você tem medo de agir de conformidade com a lei, temendo o que o adversário ou a mídia vão dizer (muitas das vezes para tirar alguma vantagem, essa, sim, ilegal), faz-se necessário rever seus conceitos de administração pública.
Essa ignorância dos limites da lei faz com que se deixe de fazer o que se deve, paralisando as administrações.
É necessário romper com essa ignorância paralisante.
Por outro lado, também, é necessário que os órgãos de controle respeitem seus limites legais e parem de agir na “suposição” de que todo gestor público é sempre um criminoso em potencial e passem a agir mais no sentido de orientar, ajudar ou recomendar, sob pena de logo mais somente criminosos efetivos se disponham a concorrer a um cargo público.
O cidadão de bem não quer ficar sob o escrutínio público e dos órgãos de controle de que tudo que faz possa ser tido ou “suposto” como um crime em andamento.
Um alerta derradeiro: a criminalização da gestão pública, feita direta ou indiretamente, é o caminho mais curto para a sua destruição.
Abdon C. Marinho é advogado.