AbdonMarinho - A DESIGUALDADE DO PAÍS COMEÇA NA JUSTIÇA.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 19 de Maio de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

A DESIGUAL­DADE DO PAÍS COMEÇA NA JUSTIÇA.

A DESIGUAL­DADE DO PAÍS COMEÇA NA JUSTIÇA.

Por Abdon Marinho.

UMA piad­inha fez sucesso, por estes dias, nas redes soci­ais. O chiste dizia: Depois o STF matar o Brasil fugirá com o advo­gado? Não achei lá muita graça, até porque, quando o STF “matar” o Brasil, se fugir, será com quem encomen­dou o “assas­si­nato”, será com o “patrão” e os advo­ga­dos esta­mos bem longe de osten­tar tais condições, somos, tam­bém, víti­mas.

O chiste, entre­tanto, serviu para uma breve reflexão.

A primeira mis­são do STF é guardar a Con­sti­tu­ição da República. É o que se depreende da leitura dos artigo 102: “Com­pete ao Supremo Tri­bunal Fed­eral, pre­cipua­mente, a guarda da Constituição…”.

Pois bem, a Con­sti­tu­ição “guardada” pelo nosso STF, esta­b­elece logo no artigo 5º. um princí­pio que é basi­lar e de fácil com­preen­são, acred­ito, até que dis­pen­sável con­star na Carta, o princí­pio da igual­dade.

Con­sta lá: “Art. 5º Todos são iguais per­ante a lei, sem dis­tinção de qual­quer natureza, garantindo-​se aos brasileiros e aos estrangeiros res­i­dentes no País a invi­o­la­bil­i­dade do dire­ito à vida, à liber­dade, à igual­dade, à segu­rança e à propriedade…”.

Desnecessário infir­mar que sendo a igual­dade entre todos um princí­pio básico e con­stando tal princí­pio na Con­sti­tu­ição Fed­eral “guardada” pelo Supremo Tri­bunal Fed­eral, o der­radeiro lugar onde iríamos imag­i­nar que tal princí­pio não seria obser­vado seria no … STF. Certo?

Mas é isso que assis­ti­mos no nosso dia a dia? Os sen­hores min­istros guardiões da Con­sti­tu­ição, naquela que é a última cidadela da democ­ra­cia, têm tratado os cidadãos, aque­les que pagam impos­tos de forma igualitária?

Não pre­cisamos ir muito longe para saber que não.

Outro dia tomei con­hec­i­mento de uma entre­vista de um dos seus min­istros, Marco Aurélio Mello, a uma tele­visão por­tuguesa, onde o mesmo, do alto de sua sapiên­cia jurídica cun­hou: “a prisão de Lula viola a Con­sti­tu­ição».

O curioso na fala de sua excelên­cia é a par­tic­u­lar­iza­ção da questão, a sua indi­vid­u­al­iza­ção, “a prisão de Lula”. Ainda mais quando a colo­cação vem de um min­istro que, dia sim e no outro tam­bém, jacta-​se ao dizer que para ele processo não tem capa.

É diante de assertiva tão con­tun­dente que cabe ques­tionar: quan­tos são os mil­hares de brasileiros que na mesma condição do ex-​presidente estão cumprindo pena após con­de­nação em segunda instân­cia depois que o STF decidir, por seu órgão máx­imo, que não fere a Con­sti­tu­ição? Vou além, quan­tos mil­hares de brasileiros estão pre­sos pro­vi­so­ri­a­mente sem ter tido qual­quer con­de­nação judi­cial? Sabe­mos que uma grande parcela.

Sabe­mos, tam­bém, que muitos estão estão encar­cer­a­dos sem qual­quer for­mação de culpa. E, ainda que muitos, os mais humildes, desas­sis­ti­dos, não têm condições, sequer, de con­sti­tuir um advo­gado, ficando seus proces­sos na dependên­cia das defen­so­rias públi­cas.

Quan­tos destes con­seguem que seus proces­sos ultra­passem as instân­cias ordinárias?

O ilus­tre min­istro assev­era: “Imagina-​se no campo da liber­dade a exe­cução pro­visória? Ninguém devolve ao cidadão a liber­dade per­dida”.

Ao meu sen­tir nada é mais impor­tante que a liber­dade, que, para mim, tem pre­cedên­cia até sobre a própria vida. Entre­tanto, enquanto o sen­hor Lula cumpre a pena a que con­de­nado por duas instân­cias, numa sala pri­v­a­tiva da Polí­cia Fed­eral, podendo rece­ber ami­gos, ali­a­dos políti­cos, com acesso a meios de comu­ni­cação, podendo, pas­mem, ser comen­tarista da Copa do mundo e agir como se fosse can­didato à presidên­cia da República, muitos out­ros, em condições mais favoráveis, com deli­tos mais leves e, até mesmo, sem terem sido jul­gadas, amargam nas mas­mor­ras medievais do sis­tema pri­sional brasileiro.

Se o min­istro acha escan­daloso o cumpri­mento da pena após segunda instân­cia o que tem a dizer de tan­tos out­ros brasileiros que estão pre­sos, muitos até, sem qual­quer con­de­nação? E enfrentando as condições mais abje­tas.

Se vale para um, tem que valer para todos.

Se querem soltar o sen­hor Lula e tan­tos out­ros con­de­na­dos, crim­i­nosos do “colar­inho branco” que afa­naram os cofres da nação têm que man­dar soltar todos os que se encon­tram em idên­tica situ­ação, sem olhar para capa do processo.

É bem provável que o traf­i­cante, o assas­sino, o estuprador, o pedó­filo, etc., até que o STF apre­cie seu último recurso, seja inocente. Não é mesmo?

Se todos são iguais per­ante a lei, segundo a Con­sti­tu­ição “guardada” por suas excelên­cias, nada mais justo que garan­tir a todos o mesmo trata­mento.

Vejam, a decisão sobre o cumpri­mento ante­ci­pado da pena, foi ado­tada pelo guardiões da Con­sti­tu­ição – é ver­dade que por maio­ria aper­tada –, desde 2016. De lá para cá, mil­hares de brasileiros foram pre­sos para ini­ciar o cumpri­mento da pena. Por que, só agora, quando tal medida pas­sou a alcançar o “andar de cima” virou um escân­dalo?

Um dos min­istros, árduo defen­sor da con­sti­tu­cional­i­dade da medida, Gilmar Mendes, disse por ocasião daquele jul­ga­mento, que a par­tir daquela decisão o Brasil pas­sava a inte­grar o mundo civ­i­lizado. Agora diz que volta­mos a Idade da Pedra.

O que acon­te­ceu neste curto espaço de tempo para a posição do min­istro dar uma quinada de 180º? Talvez esteja errado, mas só con­sigo enx­er­gar de novo a mudança dos des­ti­natários da medida.

Nestes últi­mos dias, a Segunda Turma do STF, num esforço con­cen­trado pelo “garan­tismo” deter­mi­nou a soltura de diver­sos con­de­na­dos em segunda instân­cia, além de out­ras medi­das ten­dentes a aumen­tar a certeza da impunidade no país. Man­dou soltar, absolveu, tran­cou inquéri­tos, arquivou denún­cias. Tudo den­tro da mais per­feita ordem e fun­da­men­tada na Con­sti­tu­ição que guardam.

O caso mais emblemático, acred­ito, tenha sido o do ex-​ministro José Dirceu con­de­nado a mais de trinta anos em primeira e segunda instân­cias.

Suas excelên­cias, cap­i­tanea­dos pelo min­istro Dias Tof­foli – a quem o bom senso recomen­daria a sus­peição, tendo em vista que foi sub­or­di­nado do con­de­nado, além de ter sido advo­gado do seu par­tido por muitos anos –, deter­mi­naram a sua soltura “de ofí­cio” tendo em vista que um dos min­istros pedira vista dos autos prin­ci­pais.

Diante disso, o min­istro, que daqui a pouco será pres­i­dente do STF, “impetrou” em favor do con­de­nado que out­rora fora seu supe­rior hierárquico, uma ordem de soltura, sem maiores delon­gas, sem esperar o processo voltar do pedido de vis­tas, sob o argu­mento da abu­sivi­dade da prisão.

Como se fosse pos­sível haver rever­são de uma pena de trinta anos, con­fir­mada por duas instân­cias. No dia que isso ocor­rer, talvez seja hora de “fechar” o Judi­ciário, pois algo de muito grave estará acon­te­cendo.

Não sat­is­feito o min­istro rela­tor, futuro pres­i­dente, revo­gou uma deter­mi­nação do juiz de piso, tam­bém “de ofí­cio”, que deter­mi­nava ao con­de­nado a colo­cação de tornozeleira eletrônica, em face do risco de fuga. Sua excelên­cia proibiu tal medida consignando que a ini­cia­tiva tratar-​se-​ia de uma afronta à decisão do STF que con­ced­era ao con­de­nado em duas instân­cias, ex-​superior do min­istro, a liber­dade plena.

Diante de tudo isso, poder-​se-​ia dizer que sua excelên­cia e demais min­istros, ape­nas estavam – e estão –, pre­ocu­pa­dos com o cumpri­mento da Con­sti­tu­ição e a garan­tia da mais lídima Justiça, que a mesma devoção e cuidado se aplica a todos os demais cidadãos brasileiros.

Poder-​se-​ia ide­alizar isso. Mas, eis que chega ao nosso con­hec­i­mento que o min­istro tão pre­ocu­pado com as garan­tias e o império da Justiça não demon­strou a mesma com­paixão com um cidadão que teve negado segui­mento a um “habeas cor­pus” por que roubara – e fora con­de­nado por isso –, uma bermuda no valor de R$ 10,00 (dez reais), isso, ape­sar do Min­istério Público, tit­u­lar da Ação Penal, ter opinado pela con­cessão da ordem.

Quando soube de tal fato, prin­ci­pal­mente pela prox­im­i­dade dos acon­tec­i­men­tos que cul­mi­naram com a soltura de tan­tos cor­rup­tos que sub­traíram mil­hões dos con­tribuintes, recusei-​me a acred­i­tar, mas encon­trei o HC 143.921 de Minas Gerais, com a história.

Ora, primeiro que é um absurdo que tal demanda per­corra todas as instân­cias da Justiça sem ninguém encon­trar uma moti­vação para soltar o cidadão. Segundo, que, mesmo com alguma for­mal­i­dade impedindo o con­hec­i­mento e/​ou segui­mento do habeas cor­pus, o min­istro, como fez com o sen­hor José Dirceu, pode­ria “de ofí­cio” conceder-​lhe a liber­dade.

No caso morador de rua, ladrão de uma bermuda, sua excelên­cia enten­deu aplicar a jurisprudên­cia da Corte que apli­cação do princí­pio da insignificân­cia nos casos de rein­cidên­cia. No caso de Dirceu enten­deu inde­v­ida o entendi­mento do mesmo STF que diz ser lícita o cumpri­mento da pena a par­tir da con­de­nação em segunda instân­cia.

Quer dizer que é líc­ito man­dar soltar o sen­hor Dirceu con­de­nado em duas instân­cias por ter rou­bado mil­hões dos cidadãos, mais incor­reto soltar o cidadão que roubou uma bermuda de dez reais e que depois devolvera?

Este é o mod­elo de Justiça que legare­mos a pos­teri­dade?

Bem certo estava aquele salteador que uma vez afron­tou Alexan­dre Magno, con­forme nos narra Vieira: – basta sen­hor! Que eu, porque roubo em uma barca sou ladrão e vós que roubais em armada sois imperador?

Assis­ti­mos a isso na Justiça brasileira: os que muito roubam e têm o azar de serem con­de­na­dos (o que já é raro) têm todas as hon­ras e pre­ocu­pações dos inte­grantes das mais ele­vadas Cortes, já os que roubam tostões, amargam nos porões infecto dos cárceres.

Abdon Mar­inho é advo­gado.