Dona Neuza, cidadã.
Por Abdon C. Marinho.
MINHA irmã mais velha vasculhava antigas gavetas em busca de uma fotografia da nossa mãe para mandar fazer uma fotografia memorial para o seu túmulo.
Encontrou a fotografia no seu título eleitoral.
Mandou-me o documento (acima).
Quantas histórias cabem em um retângulo de papel desbotado pelo tempo?
Um simples documento comum a qualquer pessoa e com tantas histórias de uma vida de lutas.
O Título Eleitoral trazia a fotografia do eleitor. A circunscrição: Maranhão; o número de inscrição; o nome do município ou distrito: Governador Archer; a zona eleitoral; o nome da eleitora e diversas outras informações até fechar com a assinatura do juiz eleitoral.
Dona Neuza, nascida em setembro de 1936, era órfã, filha de Hermínio Clementino de Melo e de Cândida Evangelista da Silva, pouco conviveu com os pais, sendo criada (?) por seu irmão mais velho, o tio Hermes.
Não conheceu a infância, para adolescência nunca foi apresentada.
A vida era assim. Sofrida, dura, árida como o sertão nordestino.
Foi de menina a mulher e dona de casa.
Sem ter tido a chance de ter sido filha passou logo para a condição de mãe.
É a vida sem retoques, dura e retorcida como as árvores da caatinga.
A cidadã, D. Neuza, casou-se com apenas 13 anos (ou menos?), o esposo, meu pai, sete anos mais velho; com 14 anos já era mãe, com vinte já havia parido três filhos.
Em 1968, a data da emissão do título, já era mãe de oito filhos e tido inúmeros abortos espontâneos. Cinco anos depois, no parto do décimo filho viria a falecer – antes de completar 37 anos de idade.
A cidadã, D. Neuza, que votava na sexta secção, de Governador Archer, era doméstica por profissão e tinha residência no Centro Novo.
Embora fosse formalmente analfabeta – jamais conseguiu ter qualquer educação formal –, no seu título assina com uma fina e linda caligrafia.
Aprendeu sozinha – como sozinha foi em toda sua vida.
A cidadã, D. Neuza apesar de sua inteligência superior nasceu pra ser dona de casa. As lembranças que tenho – partiu quando tinha cinco anos –, é dela em máquina Singer costurando todas as roupas da família, do esposo, da sogra, dos filhos, dos demais parentes; e dela na roça, cuidando de gado, de porcos, galinhas; é fazendo comida para alimentar um batalhão; lavando roupas, fazendo carvão; tomando de conta da casa e dos negócios.
E ainda tinha tempo para cuidar dos filhos. Quase sempre, um puxando-lhe as saias, um no colo outro na barriga.
O título eleitoral com suas informações limitadas traz tantas lembranças e tantas histórias.
Quando partiu – não deixou só uma escadinha de descendentes de zero a vinte anos –, deixou-nos um exemplo de vida do qual nenhum dos seus filhos se afastou.
O seu exemplo fez-nos fortes e resilientes para enfrentar os desafios de uma vida de orfandade.
A cidadã, D. Neuza, minha mãe, foi e tem sido nosso fanal, um farol a iluminar nosso caminho e não nos permitir que dele nos afastemos.
Abdon C. Marinho é advogado.