AbdonMarinho - Cotidiano
Bem Vindo a Pagina de Abdon Marinho, Ideias e Opiniões, Sábado, 26 de Abril de 2025



A palavra é o instrumento irresistível da conquista da liberdade.

Escrito por Abdon Marinho

Dona Neuza, cidadã.

Por Abdon C. Marinho.

 

MINHA irmã mais velha vasculhava antigas gavetas em busca de uma fotografia da nossa mãe para mandar fazer uma fotografia memorial para o seu túmulo. 

 

Encontrou a fotografia no seu título eleitoral.

 

Mandou-me o documento (acima).

 

Quantas histórias cabem em um retângulo de papel desbotado pelo tempo?

 

Um simples documento comum a qualquer pessoa e com tantas histórias de uma vida de lutas. 

 

O Título Eleitoral trazia a fotografia do eleitor. A circunscrição: Maranhão; o número de inscrição; o nome do município ou distrito: Governador Archer; a zona eleitoral; o nome da eleitora e diversas outras informações até fechar com a assinatura do juiz eleitoral. 

 

Dona Neuza, nascida em setembro de 1936, era órfã, filha de Hermínio Clementino de Melo e de Cândida Evangelista da Silva, pouco conviveu com os pais, sendo criada (?) por seu irmão mais velho, o tio Hermes. 

 

Não conheceu a infância, para adolescência nunca foi apresentada. 

 

A vida era assim. Sofrida, dura, árida como o sertão nordestino. 

 

Foi de menina a mulher e dona de casa. 

 

Sem ter tido a chance de ter sido filha passou logo para a condição de mãe. 

 

É a vida sem retoques, dura e retorcida como as árvores da caatinga. 

 

A cidadã, D. Neuza, casou-se com apenas 13 anos (ou menos?), o esposo,  meu pai, sete anos mais velho;  com 14 anos já era mãe, com vinte já havia parido três filhos.

 

Em 1968, a data da emissão do título, já era mãe de oito filhos e tido inúmeros abortos espontâneos. Cinco anos depois, no parto do décimo filho viria a falecer – antes de completar 37 anos de idade. 

 

A cidadã, D. Neuza, que votava na sexta secção, de Governador Archer, era doméstica por profissão e tinha residência no Centro Novo.

 

Embora fosse formalmente analfabeta – jamais conseguiu ter qualquer educação formal –, no seu título assina com uma fina e linda caligrafia. 

 

Aprendeu sozinha – como sozinha foi em toda sua vida. 

 

A cidadã, D. Neuza apesar de sua inteligência superior nasceu pra ser dona de casa. As lembranças que tenho – partiu quando tinha cinco anos –, é dela em máquina Singer costurando todas as roupas da família, do esposo, da sogra, dos filhos, dos demais parentes; e dela na roça, cuidando de gado, de porcos, galinhas; é fazendo comida para alimentar um batalhão; lavando roupas, fazendo carvão; tomando de conta da casa e dos negócios. 

 

E ainda tinha tempo para cuidar dos filhos. Quase sempre, um puxando-lhe as saias, um no colo outro na barriga. 

 

O título eleitoral com suas informações limitadas traz tantas lembranças e tantas histórias. 

 

Quando partiu – não deixou só uma escadinha de descendentes de zero a vinte anos –, deixou-nos um exemplo de vida do qual nenhum dos seus filhos se afastou. 

 

O seu exemplo fez-nos fortes e resilientes para enfrentar os desafios de uma vida de orfandade. 

 

A cidadã, D. Neuza, minha mãe, foi e tem sido nosso fanal, um farol a iluminar nosso caminho e não nos permitir que dele nos afastemos. 

Abdon C. Marinho é advogado.