O ocaso de uma história.
Por Abdon C. Marinho.
A SEMANA oferecia diversos temas para a reflexão que costumamos fazer: a escalada autoritária nos Estados Unidos; a guerra na Ucrânia; a persistência do massacre de palestinos em Gaza; a vida e a morte do Santo Padre Francisco; o assalto aos velhinhos e aposentados no velho novo escândalo do INSS; até mesmo o 95º aniversário de Sarney.
Em meio a tantas hipóteses de reflexão semanal, eis que nos chega a notícia da decretação e prisão do ex-presidente Collor de Mello para “roubar” a cena.
Não que seja motivo de rejúbilo o infortúnio de quem quer que seja, longe disso, esse sentimento jamais carreguei e espero nunca carregar comigo.
A notícia da prisão do ex-presidente, na verdade, reacendeu as lembranças daquele finalzinho de anos oitenta com suas esperanças e turbulências.
Cheguei na Ilha em 1985, já naquele ano comecei a participar ativamente das atividades políticas locais, a criação dos grêmios estudantis, da UBES; em 1986 foi a vez da luta pela constituinte, que queríamos popular e exclusiva, mas que acabou sendo uma constituinte congressual.
Junto com o congresso constituinte foram eleitos os novos governadores estaduais que assumiram em 1987.
O Partido do Movimento Democrático Brasileiro - PMDB, que esteve em oposição ao regime militar, foi o grande vencedor do pleito de 1986, elegendo a maioria dos governadores estaduais, entre eles a “novidade” Collor de Mello.
O senhor Collor, nascido no Rio de Janeiro, era filho da tradicional oligarquia brasileira. O seu pai era o senador da República, Arnon de Mello, da ARENA, que dava sustentação ao regime militar. Assim, Collor, ainda adolescente, passou a integrar os quadros da ARENA.
Quando na esteira da abertura política, em 1979, esse “movimento” virou partido com o nome de PDS - Partido Democrático Social, lá estava o Collor, com 30 anos de idade, “ganhando” a nomeação de prefeito de Maceió e do governador do estado.
Esse cargo de prefeito ele ocupou até 1982, quando saiu para concorrer e eleger-se deputado federal por Alagoas.
Em 1986, Collor, aproveitando a “onda” pró PMDB, deixou o PDS (que era a antiga ARENA onde filiou-se na juventude arenista em 1966) para filiar-se ao partido da moda e eleger-se governador de Alagoas.
Essa pessoa com esse passado público – pois o que se dizia de bastidores era impublicável –, ao assumir como governador em março de 1987, iniciou uma política de austeridade na máquina pública, sobretudo, nos escalões mais altos onde os servidores tinham salários altíssimos.
Essa iniciativa, que não tinha nada de extraordinário, ganhou corpo e a mídia iniciava ali a criação do personagem “caçador de marajás”.
Em apenas dois anos construíram um personagem que era o oposto ao seu “dono”: o personagem “caçador do marajás” era a antítese de tudo aquilo que Collor era na realidade.
Alguém que apoiou a ditadura, que tirou todos os proveitos políticos e financeiros disso, culminando com o império de comunicação afiliado à “Rede Globo” e o “presente” cargo de prefeito de Maceió.
Ainda adolescente, mas muito estudioso de história, eu custava a acreditar naquilo que estava acontecendo. Quando disseram que Collor seria candidato à Presidência da República, eu não acreditei, achava absurdo que alguém com aquele passado chegasse a tamanha ousadia.
Assistia perplexo à construção de um “falso mito”, parte da população brasileira estava “mesmerizada”, hipnotizada pelo personagem que qualquer pessoa tivesse passado perto do bom senso e de um livro de história sabia que não era verdade.
Acho que Collor foi o nosso primeiro caso de “falso” outside.
Em apenas dois anos (1987 a 1989) ele foi “construído” como personagem principal da República em um papel que não era dele.
E esse personagem conquistou o coração do povo brasileiro. Naquela época víamos pessoas de todas as idades e extratos sociais defendendo o Collor.
Essa defesa dele tornou-se ainda mais acentuada quando ele deixou o PMDB para o minúsculo PRN e passou a combater o governo do partido onde esteve filiado até então.
Aqui abro espaço para uma ironia do destino. Collor candidato em 1989, durante toda a campanha eleitoral, propalava (aliás, o personagem propalava) que uma das primeiras coisas que faria ao chegar na presidência seria prender o presidente da República de então, o nosso conterrâneo José Sarney.
A ironia, que não sei se alguém percebeu, é que a ordem de prisão contra ele saiu (e foi cumprida) justamente no dia do aniversário de 95 anos de Sarney, que festejava cercado de amigos, aliados, novos aliados e aduladores, sem nunca ter sido fustigado ou sofrido maiores aborrecimentos com a Justiça brasileira. Mas isso não foi por culpa dele.
Em 1989 tínhamos nomes, quadros políticos disputando aquela que era a primeira eleição direta após a ditadura: Aureliano Chaves, que foi governador de Minas Gerais e vice-presidente da República no governo Figueiredo; Leonel Brizola, que fora governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro; Ulysses Guimarães, deputado federal que desde sempre foi uma voz contrária à ditadura; Mário Covas, que foi governador de São Paulo; Paulo Maluf, que foi governador de São Paulo; Fernando Collor, ex-governador de Alagoas; Luiz Inácio Lula da Silva, sindicalista, e ainda outros.
Quem passou para o segundo turno foram Lula e Collor.
No segundo turno, embora a diferença tenha sido de pouco mais de 4 milhões de votos (35 milhões a 31 milhões), Collor ganhou praticamente em todos os estados da federação, exceto no Rio Grande do Sul, Pernambuco e no Distrito Federal.
Em março de 1990, Sarney passou a faixa para Collor, tudo devidamente negociado por conta das reiteradas ameaças de prisão, e o primeiro presidente eleito após a redemocratização assumiu o mandato.
O presidente assumiu não como Collor, mas como um personagem criado num espaço de pouco mais de dois anos. Tanto assim que uma das primeiras medidas do governo foi “confiscar todos os ativos financeiros” dos cidadãos e empresas.
Exceto para uma casta da sociedade, sempre munida de boas informações, todos os saldos bancários acima de 50 mil cruzados novos foram confiscados pelo Plano Collor, que tinha por meta estabilizar a inflação que naqueles dias chegava a 80, 90 por cento ao mês.
Narra a história que medida tão drástica ganhou de Fidel Castro, então ditador cubano de plantão, que viera a posse, o seguinte comentário: “O Brasil implementou o socialismo antes de Cuba”.
Mesmo com isso, Collor continuou a contar com o apoio de muitos brasileiros. Muitos não queriam acreditar que tinham eleito um personagem.
As coisas começaram a “azedar” apenas quando seu irmão caçula denunciou que o governo dele era uma farsa calçada na corrupção comandada por Paulo César Farias, o PC.
Mesmo após essa denúncia, vivendo no personagem, Collor chamou o povo para ir às ruas de verde-amarelo para demonstrar apoio a ele. O que se viu no dia da suposta manifestação foi o povo vestido de luto, em protesto.
O resto da história todos sabemos: Collor foi o primeiro presidente eleito da nova república e o primeiro a sofrer processo de impeachment. Durante seu governo nem tudo foram espinhos, tivemos iniciativas para abertura do mercado brasileiro, para inovação tecnológica, algumas iniciativas de preservação ambiental, etc.
Depois de cumprir o prazo de inelegibilidade, Collor voltou à política, tendo sido eleito duas vezes senador pelo estado de Alagoas, encerrando o mandato em 2022, quando perdeu a eleição de governador.
O irmão de Collor, Pedro, que foi um dos responsáveis pela derrocada da “República de Alagoas”, antes de morrer, em 1994, foi co-autor do livro “A trajetória de um farsante”.
Enquanto escrevo esse texto, leio que o ex-presidente Collor encontra-se preso na ala especial do presídio de Maceió, enquanto seus advogados tentam transferi-lo para prisão domiciliar, alegando problemas de saúde que o acometem.
Um dos argumentos dos causídicos é que o ex-presidente tem, entre outros, transtornos de bipolaridade.
Não sei se precisaram de laudo para isso, na verdade trata-se, se verdade, de um laudo tardio. Desde 1987, mais ainda a partir de 1989, que olho para ele e detecto visualmente que sofre desse e de outros transtornos, sempre existiu esse conflito entre a pessoa real e o personagem.
Na história da política brasileira, o ex-presidente é um personagem que merece ser estudado, pois chega a ser impressionante como conseguiu enganar tantos por tanto tempo.
A prova maior disso é que hoje Collor encontra-se cumprindo pena não pelos atos de corrupção praticados no seu curto governo (1990/1992), mas pelas corrupções que praticou no governo do Partido dos Trabalhadores - PT, aquele mesmo partido que perdeu a eleição para ele em 1989.
Essa é mais uma ironia da história brasileira.
Abdon C. Marinho é advogado.