AbdonMarinho - A capotagem do Brasil
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 11 de Maio de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

A capotagem do Brasil


A CAPOTAGEM DO BRASIL.

Por Abdon C. Marinho.

CON­VER­SAVA com um dos meus sobrin­hos certa vez quando, a propósito de algo que já não lem­bro, ele saiu-​se com esta: –– ah, tio, o mundo não gira, ele capota.

Uma gíria comum da juven­tude que não se dá muita “trela” quando pro­nun­ci­ado, hoje, entre­tanto, anal­isando a quadra polit­ica, fico a pen­sar o quanto tal “chiste” não se reveste de ver­dade e pro­fe­cia.

Em out­ras palavras, diante das lem­branças e dos olhos de todos, não digo o mundo, mas, cer­ta­mente, o Brasil “capotou”.

Lem­bro que em 1984 mil­hões de cidadãos brasileiros em todas as cidades do país, vesti­dos de verde e amarelo saíram às ruas a protes­tar con­tra o régime mil­i­tar, que já durava vinte anos, e com uma pauta bem especí­fica: Dire­tas já!

O clamor de todos era pela volta dos mil­itares para os quar­téis, ou seja, para fora da vida política nacional, e pelo dire­ito de votarem em um pres­i­dente civil para con­duzir a nação depois da longa noite que durou vinte anos.

Além do brado forte, prin­ci­pal­mente, na voz do locu­tor Osmar San­tos, que se tornou a voz da daquela cam­panha, out­ras palavras de ordem se ouviam, tais como: “um, dois, três, qua­tro, cinco, mil, quer­e­mos eleger o pres­i­dente do Brasil”, e tan­tas outras.

As lem­branças que tenho, daquele ano em que ainda era menino, é das praças lotadas para os comí­cios das “Dire­tas Já!”, em todas as cap­i­tais do país, sem qual­quer mobi­liza­ção, que não fosse o “boca a boca”, as mul­ti­dões reuniam-​se para ouvir os líderes políti­cos que encabeçavam o movi­mento: Tan­credo Neves, Franco Mon­toro, Ulysses Guimarães, Mário Covas, Miguel Arraes, Lula, Brizola; e, tam­bém, dezenas de artis­tas que se somavam ao movi­mento: Gil, Cae­tano, Chico, Fafá de Belém, e tan­tos out­ros.

O hino nacional era entoado em todos os can­tos do país como prenún­cio da esper­ança pelos tem­pos novos que se esper­avam que viessem.

A cam­panha das “dire­tas já!” tin­ham por obje­tivo a aprovação da pro­posta de emenda con­sti­tu­cional de auto­ria do dep­utado fed­eral Dante de Oliveira trans­ferindo para os cidadãos/​eleitores o dire­ito de escol­her o pres­i­dente da república que desde a instau­ração do régime mil­i­tar pas­sou a ser feita por um Colé­gio Eleitoral.

A eleição do pres­i­dente pelo tal colé­gio já estava pro­gra­mada para 15 de janeiro de 1985 e o que se que­ria na cam­panha pelas dire­tas já era que essa escolha já se desse pela votação dos cidadãos.

Às vésperas da votação da emenda Dante de Oliveira o pres­i­dente de então, João Batista de Figueiredo, decre­tou “Estado Sítio”, o acesso a cap­i­tal fed­eral, foi cerceado.

Não sei se por conta disso ou pela falta de votos – o quórum para aprovar emenda con­sti­tu­cional é difer­en­ci­ado –, a emenda não foi aprovada.

O sonho de voltar a escol­her por votação direta o pres­i­dente da república somente seria con­cretizado cinco anos depois daquela cam­panha, em 1989.

Em 1985 tive­mos a última eleição no Brasil através do Colé­gio Eleitoral tendo sido eleitas chapa Tan­credo Neves e José Sar­ney.

Era o nasci­mento do que ficou con­hecida como “Nova República”.

Com a morte de Tan­credo Neves, coube a Sar­ney a ini­cia­tiva de cumprir a promessa de acabar com o Colé­gio Eleitoral e con­vo­car uma Assem­bleia Nacional Con­sti­tu­inte.

A Con­sti­tu­ição de 1988, tam­bém con­hecida como a “Con­sti­tu­ição Cidadã”, trouxe as bal­izas do novo estado brasileiro, no pós ditadura. Den­tre elas o voto uni­ver­sal e direto para todos os car­gos ele­tivos, de vereador a pres­i­dente da república.

Todo cidadão brasileiro tem o direto/​dever de par­tic­i­par da vida política do país, tendo voto o mesmo valor: “Art. 14. A sobera­nia pop­u­lar será exer­cida pelo sufrá­gio uni­ver­sal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos ter­mos da lei …”. Con­sti­tu­ição Fed­eral, art. 14.

Vejam que Con­sti­tu­ição é clara ao dizer que o voto do branco, do negro, do indí­gena, do pobre, do rico, do nordes­tino, do sulista, do nortista, do homem, da mul­her, etc., todos têm o mesmo valor.

Tal sobera­nia com voto uni­ver­sal direto e secreto e com igual valor não é uma “graça” é uma con­quista da sociedade obtida à duras penas, depois de vinte e um anos de ditadura, e de mais qua­tro de embates pela e durante a elab­o­ração da Constituição.

O direito/​dever de par­tic­i­par da vida política do país, dos esta­dos e municí­pios vem sendo exer­cido de forma reg­u­lar a cada dois anos.

Aqui, cabe obser­var que, emb­ora com a lim­i­tações impostas pelo régime mil­i­tar, ape­nas a eleição de pres­i­dente da república, de prefeitos das cap­i­tais e do gov­er­nador do Dis­trito Fed­eral, não eram dire­tas.

Em 1986, conquistou-​se o direto de se eleger os prefeitos das cap­i­tais e, em 1989, o dire­ito de escol­her­mos o pres­i­dente da república.

Logo, desde 1989 que o processo eleitoral para pres­i­dente ocorre de forma reg­u­lar, con­duzido pela Justiça Eleitoral cada vez mais mod­erna e atu­ante e os mandatos sendo exer­ci­dos nos moldes da Con­sti­tu­ição Fed­eral e no respeito às leis.

Nestes 33 anos, tive­mos eleições reg­u­lares para pres­i­dente em 1994, 1998, 2002, 2006, 2010, 2014, 2018 e 2022.

Ah, tive­mos, dois impeach­ment de pres­i­dente feitos em con­formi­dade com a lei, que, muito emb­ora ten­ham sido ques­tion­a­dos, foram con­sid­er­a­dos legais.

O breve histórico acima – inclu­sive o de cunho emo­cional –, serve para ten­tar­mos com­preen­der a “capotagem” que o Brasil vive.

Desde que as urnas eletrôni­cas pro­nun­cia­ram, em segundo turno, o resul­tado das eleições pres­i­den­ci­ais que temos assis­tido a uma série de protestos con­tra resul­tado do pleito. Já tive­mos blo­queios de estradas, cau­sando pre­juí­zos de mil­hões ao país e, até, no último dia 2 de novem­bro, dia con­sagrado aos mor­tos, dezenas, cen­te­nas e até mil­hares de pes­soas reunidas em frente aos quar­téis das Forças Armadas com ape­los para que façam uma inter­venção militar.

A fotografia é extraordinária.

Vemos pes­soas, que, talvez, descon­heçam os fatos históri­cos, irem para a frente dos quar­téis pedindo que mil­itares saiam do lugar para onde os man­damos ir em 198485.

É, como dizem os jovens, uma capotagem histórica.

Sem­pre disse e reafirmo que é que essa ideia de pedir inter­venção mil­i­tar, descon­hecer o resul­tado das eleições pres­i­den­ci­ais é coisa de “lunáti­cos”.

Isso para não dizer coisas piores.

Ficamos um quarto de século (19641989) pri­va­dos da nossa cidada­nia, tendo negado o direto básico de escol­her­mos quem seriam as pes­soas encar­regadas de con­duzir os des­ti­nos da nação e agora, quando a democ­ra­cia brasileira encontra-​se em processo de con­sol­i­dação e apri­mora­mento, aparece-​nos estes cidadãos pre­gando o retro­cesso insti­tu­cional.

Opor­tuno reg­is­trar que não se tratam de ado­les­centes que não con­hecem ou não acom­pan­haram o processo histórico do país, entre os que par­al­isam estradas, os que acam­pam não frente dos quar­téis, encontram-​se sen­hores, sen­ho­ras e até idosos que viveram o período de exceção; não se trata, tam­bém, de ile­tra­dos ou pes­soas sem con­hec­i­mento, entre eles estão todos os tipos de pes­soas e profis­sion­ais, médi­cos, engen­heiros, pro­fes­sores, enfer­meiros, advo­ga­dos.
São pes­soas que tiveram a opor­tu­nidade de estu­dar e adquirir con­hec­i­mento, bem pode­riam “perder um temp­inho” se ded­i­cando a con­hecer a história do país, muito emb­ora, não se trate de pes­soas que descon­hecem tais fatos.

Na ver­dade, são pes­soas que pas­saram por um processo de rad­i­cal­iza­ção política que, assim como os devo­tos do sebas­tian­ismo, acred­i­tam na volta do rei D. Sebastião.

Vejam que à mín­gua de qual­quer argu­mento ten­tam anu­lar uma eleição livre por não terem con­cor­dado com o resul­tado.

Que tipo de lou­cura é essa? Ainda que a eleição ter­mi­nasse empatada, a pre­visão da lei é que o mais velho assuma.

Ter-​se-​ia que respeitar os resul­ta­dos do pleito.

Já tive­mos diver­sos casos assim, aqui mesmo no Maran­hão.

A democ­ra­cia pres­supõe o respeito da von­tade da maio­ria, ainda que não seja uma maio­ria elás­tica, é a regra do jogo. Aliás, quando da eleição do atual pres­i­dente, 2018, seus ami­gos e par­tidários fiz­eram dis­tribuir e afixar nos diver­sos can­tos do país out­doors com diz­eres semel­hantes.

Ques­tionar o resul­tado do pleito, igno­rar uma difer­ença de mais de dois mil­hões de votos, man­i­fes­tação livres de eleitores é, com o perdão da palavra, coisa de lunático.

Não inter­essa se o vence­dor é mel­hor ou pior que o perde­dor, o pres­su­posto da democ­ra­cia é o respeito à von­tade extraída das urnas.

A história mostra o muito que demor­amos para chegar­mos até aqui, não podemos admi­tir retro­ces­sos.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.