AbdonMarinho - DESISTIR NUNCA FOI OPÇÃO - Parte 1.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 12 de Maio de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

DESI­S­TIR NUNCA FOI OPÇÃO — Parte 1.

DESI­S­TIR NUNCA FOI OPÇÃO — Parte Um.

Por Abdon C. Marinho*.

CERTA VEZ um amigo que con­hece um pouco da minha história me fez a seguinte per­gunta:

— Pen­sastes alguma vez em desistir?

Não sei se a per­gunta era um implíc­ito pedido de socorro ou se faz parte do “roteiro” da existên­cia dos mais jovens: pen­sar em desi­s­tir diante dos prob­le­mas que os afligem como opção primeira.

Mas, de pronto, respondi-​lhe:

— Não. Desi­s­tir nunca foi uma opção.

Imag­ino, na ver­dade, que talvez a resposta não tenha sido a mais ade­quada. Talvez devesse ter dito: desi­s­tir para onde? Ou, desi­s­tir como?

Acred­ito que quando as pes­soas pensem em desi­s­tir diante um desafio, elas sim­ples­mente pas­sam a ignorá-​lo; voltar para casa do pai ou da mãe, da avó; ou mesmo, desi­s­tir de viver, entrando em depressão ou recor­rendo a um gesto extremo, pondo fim a própria vida.

Tais coisas nunca me pas­saram pela cabeça: nunca tive para onde voltar.

Na minha vida sem­pre só exis­tiu um cam­inho: seguir em frente.

Lev­an­tar cada dia e pen­sar em não come­ter os mes­mos erros dos dias ante­ri­ores – sem­pre temos muitos erros novos a serem explo­rados.

Quando a adoção de um recurso extremo, estes mes­mos que nunca povoaram minha cabeça.

Até cos­tumo dizer aos mais próx­i­mos: se algum dia apare­cer morto lá por casa, inves­tiguem. Não irei por von­tade própria e nunca usaria nada que me leve a isso.

Medica­men­tos ou out­ras dro­gas líc­i­tas ou ilíc­i­tas sem­pre pro­curei man­ter dis­tân­cia, exceder-​me, então, nem pen­sar.

A inda­gação, entre­tanto, me fez refle­tir sobre as situ­ações que me troux­eram até aqui.

E começamos pelo começo como deve ser.

Naquele domingo de out­ubro em que ocor­reu minha estreia no palco da vida, está­va­mos soz­in­hos (os adul­tos, estavam para as fontes ou para out­ros afaz­eres). Quando minha gen­i­tora começou a sen­tir as “dores” e pediu a algum dos menos para ir atrás da parteira, uma tia minha, esposa de tio Antônio Cal­heiro, não quis esperar e fui logo tratando de vir ao mundo.

Do que lem­bro, quando chegou, “ape­nas” teve o tra­balho de cor­tar o cordão umbil­i­cal me dar o banho do nasci­mento.

Já naquela oper­ação, o nascer apres­sado, pode­ria ter “sobrado”.

Escapei e vim ao mundo bonito, alvo e gordinho. Pela tradição de colo­car nomes ini­ci­a­dos pela letra “A”, exceção feita ape­nas no caso do irmão que me ante­cedeu, o Goça, bati­zado por Fran­cisco em hom­e­nagem ao santo com mesmo nome, recebi o nome de Abdon, apel­i­dado na primeira infân­cia de Bida.

O nome foi uma escolha da minha madrinha, D. Nazaré, da far­má­cia, esposa de Absalão, que por ser muito reli­giosa achou esse nome na Bíblia, den­tro das opções que começava com a vogal já referida.

Um ano e meio depois da estreia, no máx­imo dois, minha irmã Ana ainda não havia nascido, por ser gat­inho, alv­inho e gordinho, fui “achado” por uma tal de poliomielite. Ninguém por aque­las ban­das sabia do que se tratava, nunca tin­ham ouvido falar nela. Como, feliz­mente, ape­nas eu fui achado pela “mal­vada” acred­ito que tenha sido pelas car­ac­terís­ti­cas acima referidas.

Certa vez, em tom de pil­héria, um amigo me disse que Deus me fiz­era “alei­jado” para nunca me “perder de vista” – tam­bém é uma expli­cação.

A mal­vada andou perto de me levar. Dias e dias com febre, indo, não indo, pas­sando mal enquanto a molés­tia ia destru­indo meu organ­ismo, defor­mando meus mús­cu­los, me tor­nando alei­jado.

Meus pais, coita­dos, sem qual­quer instrução ou con­hec­i­mento, não sabiam o que fazer. O trata­mento era a base chás, ervas, rezas, orações e promes­sas para São Fran­cisco de Assis.

Uma “boca de noite”, não se sabe se por ouvir dizer que estava quase de par­tida ou por uma das coin­cidên­cia inex­plicáveis da vida, apare­ceu lá por casa o sen­hor Joaquim Rosa, que morava quase uma légua de dis­tân­cia da minha casa, entrando mato a den­tro.

Chegando a minha casa e vendo aquele “frejo” todo em torno da minha quase anun­ci­ada par­tida, disse aos pais: — meu com­padre, minha comadre, aqui ele não vai resi­s­tir. Devem levar o menino ime­di­ata­mente para Teresina.

Assim, parti – não desta para mel­hor –, mas para Teresina, no Piauí, para rece­ber atendi­mento médico.

Se ainda hoje é difí­cil andar pelas estradas do Maran­hão, imag­inem há mais de cinquenta anos. Não havia estradas. Minha mãe, já grávida, teria que fazer parte do per­curso em lombo de ani­mal, até um cen­tro mais evoluído onde pode­ria pegar um cam­in­hão para seguir viagem.

Arru­maram os ani­mais, malas e faneis para comer durante o tra­jeto e lá se foi minha mãe rumo à Cap­i­tal do Piauí, com um menino no colo, quase morto e com minha irmã na bar­riga.

Em Teresina, o diag­nós­tico da poliomielite não foi muito promis­sor, emb­ora não cor­resse mais o risco de mor­rer, ficaria par­alítico para sem­pre e, talvez, não voltasse a andar.

Foi a segunda vez que minha mãe me salvou.

Ao retornar de Teresina começou o duro apren­dizado para voltar a andar. Minha mãe foi minha primeira fisioter­apeuta. Gas­tou muito sebo de carneiro aque­cido em mas­sagens inter­mináveis nas per­nas, além de muitas promes­sas para São Fran­cisco.

Lem­bro de uma imensa colcha de veludo amarelo que minha mãe colo­cava na sala de terra batida para que pudesse voltar a engat­in­har e depois voltar a andar.

Não é que deu certo. Com três ou qua­tro anos já estava andando nova­mente. Minha mãe con­seguirá mais um vez.

Por esta graça alcançada tive que usar o hábito fran­cis­cano durante um bom tempo.

Engraçado que quando usava o hábito os coleguin­has do povoado ficavam provo­cando: — mul­herz­inha, mul­herz­inha!

Como sabe­mos, cri­ança é o cão em forma de gente.

Eu, já sabendo disso, não usava nada por baixo então lev­an­tava o hábito e mostrava os “doc­u­men­tos”: — olha aqui quem é mulherzinha!

A “vida boa” não durou muito tempo. Logo a barra da tem­pes­tade mod­i­fi­caria para sem­pre as nos­sas vidas.

Foi em agosto de 1973, tinha cinco anos, minha irmã, Ana Cleide, dois e pouco, atrás de nós uma escad­inha, até chegar na minha irmã mais velha, com vinte e um anos, já casada.

Minha mãe, pas­sando dos trinta e seis anos, estava grávida mais uma vez, a décima, se reti­ramos das con­tas os diver­sos abor­tos espon­tâ­neos.

Aos treze dias daquele agosto, em tenra idade e com tan­tos fil­hos para criar, minha mãe mor­reu após dá à luz ao nosso caçula.

Narro o episó­dio no texto “Dia de Ano”, já pub­li­cado no site e nas min­has redes soci­ais.

Na tarde/​noite do dia 12, quando já se prepar­ava para o tra­balho de parto – já estava com as primeiras dores –, falei com minha mãe pela última vez.

Engraçado que pas­sa­dos tan­tos anos (49, para ser exato), lem­bro de cada detalhe daquela noite/​dia, do momento em que estava no quarto com ela e tio Praxedes, irmão dela e já viúvo de tia Zefa, irmã de meu pai e que mor­rera no parto, acho que um ano antes, ou pouco mais que isso.

Fazia per­altices, colo­cava o ded­inho nas dobradiças de um cofre e ficava dizendo que não con­seguia tirar.

Neste clima de brin­cadeiras, enquanto meu tio con­ver­sava com minha mãe e eu a toda hora cobrando atenção, minha mãe chamou-​me para perto dela e disse: — meu filho vai ser um doutor para cuidar dos seus irmãos.

Foi a última vez que falei com minha mãe. Depois me levaram para dormir no quarto que dividia com minha vó paterna a quem chamá­va­mos de “titia” e tinha os olhos mais azuis que jamais alguém viu.

Quando acordei na madru­gada ou no raiar do dia, já foi com o barulho e o cheiro da morte tomando conta de todo o ambi­ente. Muito choro, muitas velas já ace­sas e queimando.

Minha mãe não resi­s­tira e mor­rera.

A minha vida, a nossa vida, já era outra, mudara para sem­pre. Eu per­dia meu pilar, minha pro­te­tora. Eu me tornara órfão.

Além de defi­ciente, órfão aos cinco anos de idade.

Durante muitos anos – e ainda hoje –, me per­gunto se minha mãe teria pressen­tido a morte ao me atribuir a respon­s­abil­i­dade de cuidar dos meus irmãos com ape­nas cinco anos ou se na ver­dade, ao me atribuir tal mis­são não estava, mais uma vez, cuidando de mim ao me obri­gar a nunca desi­s­tir até cumprir a mis­são que fora con­fi­ada.

Lá estava eu, órfão, defi­ciente e com uma mis­são a cumprir – com cinco anos de idade.

Os anos que viriam não seriam fáceis e, prin­ci­pal­mente, seriam bem solitários.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.

P.S. No próx­imo capí­tulo nar­raremos os primeiros anos da orfan­dade e como me fiz ator.

(Texto extraído do livro “Memórias e out­ras crôni­cas”, de minha auto­ria, que, talvez, seja pub­li­cado algum dia).