AbdonMarinho - O igarapé da minha aldeia encheu.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 11 de Maio de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

O igarapé da minha aldeia encheu.

O IGARAPÉ DA MINHA ALDEIA ENCHEU.

Por Abdon C. Marinho.

MINHA amada irmã mais velha, Deiza, mandou-​me, no fim de sem­ana pas­sado, as ima­gens do igarapé da minha aldeia com­ple­ta­mente cheio, com as pes­soas admi­radas com o vol­ume de água.

As ima­gens man­dadas por ela ati­varam min­has lem­branças adorme­ci­das há anos.

Pedrin­has é o igarapé da minha infân­cia, dos meus primeiros anos no Cen­tro Novo. Cri­ado soz­inho, como Deus cria batatas na beira do rio, lem­bro que ia pra lá e pas­sava man­hãs ou tardes ou dias inteiro ban­hando nele. Quando mais cheio, usava uma bóia de pneu velho.

Desde sem­pre fez parte da minha história.

Conta a lenda que quando vim ao mundo, em um dia de domingo, minha mãe deu à luz soz­inha pois todos da casa estava para o igarapé, as mul­heres voltadas para lavar as roupas e os demais, homens, meni­nos usando suas águas para a diver­são. Quando a parteira chegou lá estava eu pronto para as batal­has que viriam – e não seriam pou­cas.

As lem­branças que tenho dos meus primeiros anos são de um igarapé perene, com boa água o ano todo, usadas para tudo: dar banho nos ani­mais, nós mes­mos ban­har­mos, lavar as roupas, pescar umas piabas, e tan­tas out­ras coisas.

As águas do Pedrin­has só não eram uti­lizadas para beber, para este fim, uti­lizá­va­mos as águas de um poço cacimba, escav­ado com capri­cho e revestido até o fundo com tábuas de madeira; uma gan­gorra feita por marceneiro ded­i­cado com­punha a estru­tura para a cap­tação da água uti­lizada para beber e coz­in­har.

Imag­ino que rece­beu esse nome dev­ido as pedrin­has que cobriam todo o seu leito, em taman­hos diver­sos e que pare­ciam ter sido pol­i­das à mão.

Uma con­versa de adul­tos entre­ou­vida punha a imag­i­nação em curso. Certa vez ouvi: — fulano foi preso e lev­ado a Pedrin­has. Pen­sava qual o prob­lema de ficar preso em Pedrin­has? Gosto tanto de lá. Na minha mente infan­til, a única refer­ên­cia que tinha de Pedrin­has era a do “meu igarapé” favorito.

O igarapé cor­ria pelas ter­ras de meu pai, ao pé da serra onde pas­sava os dias a pas­sar­in­har ou a procura dos nin­hos – não tenho lem­branças de sua nascente.

Cor­rendo às mar­gens da estrada por entre o capim, o Pedrin­has gan­hava corpo numa espé­cie de várzea que ficava abaixo de um cur­ral ao lado de casa. Era nesse local que o uti­lizá­va­mos para o lazer.

Com o pas­sar dos anos as águas foram escasse­ando, o igarapé deixou de ser perene – acred­ito que a esti­agem, o des­mata­mento, a ocu­pação, ten­ham “matado” suas nascentes –, ainda assim, no inverno, usá­va­mos suas águas para as brin­cadeiras.

Foi por esse tempo, fins dos anos setenta para oitenta, que para ter uma outra reserva de água para os ani­mais e para o uso domés­tico, que meu pai con­tra­tou umas horas de tra­tor e fez um açude grande que rece­bia parte das águas do Pedrin­has no inverno.

Com o Pedrin­has seco ou com pouquís­sima água mudamos as brin­cadeiras para o açude. Já eram meus últi­mos anos no Cen­tro Novo. Dali a pouco iria para sede do municí­pio, primeiro Gov­er­nador Archer, depois Gonçalves Dias e, por fim, para a cap­i­tal.

Quando morava em Gonçalves Dias, vez ou outra, pegava minha “monareta” e ia até o Cen­tro Novo atrás dos resquí­cios da minha infân­cia. Pas­sava pelo cemitério onde des­cansa minha mãe e tan­tos out­ros entes queri­dos, pas­sava pelo Pedrin­has – ou o que fora ele –, subia a ladeira, até alcançar, às mar­gens esquerda, o local onde ficava o nosso cur­ral e casa onde nasci. Ambos extin­tos. À dire­ita só o chão árido, batido do que fora a casa de tia Mal­fisia (a irmã mais velha do meu pai), a casa do Pingo e prima Ciça e, por fim a casa de Maria Bizunga.

A ladeira às mar­gens do Pedrin­has que aces­sava a casa do meu pai era muito alta. Por isso mesmo o igarapé se aco­mo­dava em uma espé­cie de remanso entre os mor­ros.

Era em tal ladeira que den­tro de “con­gas” de coqueiros usá­va­mos para escor­re­gar até lá em baixo. A estrada até o povoado era “car­roçal”, quando, uma vez na vida outra na morte, pas­sava algum carro, era novi­dade para um mês inteiro.

Seguia na minha monareta, pas­sando pela antiga casa de Batista, pelo ter­reno que fora o sítio do meu avô (que não cheguei a con­hecer) – atrás deste ter­reno ficava um outro espaço caro as min­has lem­branças: um pomar com diver­sos tipos de mangueiras; manga de mesa, manga rosa, manga esse, e tan­tas out­ras. Mais atrás ficavam as capoeiras que não con­hecia.

Pas­sava pela casa que fora de tia Chiquinha, dos pri­mos, até chegar a casa de tio Diolindo, o tie Dió. Ficava um tempo com prima Clarice e depois me prepar­ava para ped­alar mais uma légua voltando.

Lev­ava quase um dia inteiro em tais aven­turas.

Há uns dez anos fui a Gov­er­nador Archer e de lá para Gonçalves Dias revis­i­tando min­has lem­branças.

Nos anos que pas­sei em Gov­er­nador Archer, morei na Rua do Sossego, por trás da casa adquirida ou alu­gada para estu­dar­mos, ficava (ou ainda fica) um campo de fute­bol por onde cor­tava cam­inho até a Escola Alde­nora Belo, onde estu­dava, depois morei na casa da minha irmã Bibia, na Rua Sete de Setem­bro.

Já na saída lembre-​me do sítio do primo Arlindo, filho de um irmão de minha mãe, eu, minha irmã Ana e suas fil­has Elianai e Etnã, passá­va­mos tardes brin­cado em banho do ter­reno.

Adi­ante pas­samos pelo pé de tamarindo onde, quando cri­ança, com meu pai ou algum irmão mais velho, a cav­alo ou de burro, pará­va­mos para comer algum de seus fru­tos, se era a estação. Mais à frente à entrada do povoado Vences­lau e na outra margem a entrada do Cen­tro do Came­los. Logo depois, pas­sando por onde out­rora fora um igarapé grande e de águas tur­bu­len­tas, que os bur­ros tin­ham difi­cul­dades em vencer, cheg­amos ao Cen­tro Novo.

Via­java com Afrânio e o sobrinho Wal­lace e ia dizendo o que era cada coisa, de quem fora cada casa, o que acon­te­cera em cada local.

Paramos no local onde ficava a casa onde nasci e nosso cur­ral – próx­imo dali foi con­struída a casa da minha irmã que adquiriu a pro­priedade.

Em seguida paramos no cemitério e em seguida na casa de um primo, até vencer­mos aquela légua para chegar em Gonçalves Dias.

Tudo já tão difer­ente da minha infân­cia.

As lem­branças do que pas­sei tornaram-​se um tesouro só meu. O que pas­sei no pomar, o que senti na serra, os risos no igarapé ou no açude, os medos que senti ao escor­re­gar … out­ros até lem­bram, mas são out­ras lem­branças.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.

O IGARAPÉ DA MINHA ALDEIA ENCHEU.

Por Abdon C. Marinho.

MINHA amada irmã mais velha, Deiza, mandou-​me, no fim de sem­ana pas­sado, as ima­gens do igarapé da minha aldeia com­ple­ta­mente cheio, com as pes­soas admi­radas com o vol­ume de água.

As ima­gens man­dadas por ela ati­varam min­has lem­branças adorme­ci­das há anos.

Pedrin­has é o igarapé da minha infân­cia, dos meus primeiros anos no Cen­tro Novo. Cri­ado soz­inho, como Deus cria batatas na beira do rio, lem­bro que ia pra lá e pas­sava man­hãs ou tardes ou dias inteiro ban­hando nele. Quando mais cheio, usava uma bóia de pneu velho.

Desde sem­pre fez parte da minha história.

Conta a lenda que quando vim ao mundo, em um dia de domingo, minha mãe deu à luz soz­inha pois todos da casa estava para o igarapé, as mul­heres voltadas para lavar as roupas e os demais, homens, meni­nos usando suas águas para a diver­são. Quando a parteira chegou lá estava eu pronto para as batal­has que viriam – e não seriam pou­cas.

As lem­branças que tenho dos meus primeiros anos são de um igarapé perene, com boa água o ano todo, usadas para tudo: dar banho nos ani­mais, nós mes­mos ban­har­mos, lavar as roupas, pescar umas piabas, e tan­tas out­ras coisas.

As águas do Pedrin­has só não eram uti­lizadas para beber, para este fim, uti­lizá­va­mos as águas de um poço cacimba, escav­ado com capri­cho e revestido até o fundo com tábuas de madeira; uma gan­gorra feita por marceneiro ded­i­cado com­punha a estru­tura para a cap­tação da água uti­lizada para beber e coz­in­har.

Imag­ino que rece­beu esse nome dev­ido as pedrin­has que cobriam todo o seu leito, em taman­hos diver­sos e que pare­ciam ter sido pol­i­das à mão.

Uma con­versa de adul­tos entre­ou­vida punha a imag­i­nação em curso. Certa vez ouvi: — fulano foi preso e lev­ado a Pedrin­has. Pen­sava qual o prob­lema de ficar preso em Pedrin­has? Gosto tanto de lá. Na minha mente infan­til, a única refer­ên­cia que tinha de Pedrin­has era a do “meu igarapé” favorito.

O igarapé cor­ria pelas ter­ras de meu pai, ao pé da serra onde pas­sava os dias a pas­sar­in­har ou a procura dos nin­hos – não tenho lem­branças de sua nascente.

Cor­rendo às mar­gens da estrada por entre o capim, o Pedrin­has gan­hava corpo numa espé­cie de várzea que ficava abaixo de um cur­ral ao lado de casa. Era nesse local que o uti­lizá­va­mos para o lazer.

Com o pas­sar dos anos as águas foram escasse­ando, o igarapé deixou de ser perene – acred­ito que a esti­agem, o des­mata­mento, a ocu­pação, ten­ham “matado” suas nascentes –, ainda assim, no inverno, usá­va­mos suas águas para as brin­cadeiras.

Foi por esse tempo, fins dos anos setenta para oitenta, que para ter uma outra reserva de água para os ani­mais e para o uso domés­tico, que meu pai con­tra­tou umas horas de tra­tor e fez um açude grande que rece­bia parte das águas do Pedrin­has no inverno.

Com o Pedrin­has seco ou com pouquís­sima água mudamos as brin­cadeiras para o açude. Já eram meus últi­mos anos no Cen­tro Novo. Dali a pouco iria para sede do municí­pio, primeiro Gov­er­nador Archer, depois Gonçalves Dias e, por fim, para a cap­i­tal.

Quando morava em Gonçalves Dias, vez ou outra, pegava minha “monareta” e ia até o Cen­tro Novo atrás dos resquí­cios da minha infân­cia. Pas­sava pelo cemitério onde des­cansa minha mãe e tan­tos out­ros entes queri­dos, pas­sava pelo Pedrin­has – ou o que fora ele –, subia a ladeira, até alcançar, às mar­gens esquerda, o local onde ficava o nosso cur­ral e casa onde nasci. Ambos extin­tos. À dire­ita só o chão árido, batido do que fora a casa de tia Mal­fisia (a irmã mais velha do meu pai), a casa do Pingo e prima Ciça e, por fim a casa de Maria Bizunga.

A ladeira às mar­gens do Pedrin­has que aces­sava a casa do meu pai era muito alta. Por isso mesmo o igarapé se aco­mo­dava em uma espé­cie de remanso entre os mor­ros.

Era em tal ladeira que den­tro de “con­gas” de coqueiros usá­va­mos para escor­re­gar até lá em baixo. A estrada até o povoado era “car­roçal”, quando, uma vez na vida outra na morte, pas­sava algum carro, era novi­dade para um mês inteiro.

Seguia na minha monareta, pas­sando pela antiga casa de Batista, pelo ter­reno que fora o sítio do meu avô (que não cheguei a con­hecer) – atrás deste ter­reno ficava um outro espaço caro as min­has lem­branças: um pomar com diver­sos tipos de mangueiras; manga de mesa, manga rosa, manga esse, e tan­tas out­ras. Mais atrás ficavam as capoeiras que não con­hecia.

Pas­sava pela casa que fora de tia Chiquinha, dos pri­mos, até chegar a casa de tio Diolindo, o tie Dió. Ficava um tempo com prima Clarice e depois me prepar­ava para ped­alar mais uma légua voltando.

Lev­ava quase um dia inteiro em tais aven­turas.

Há uns dez anos fui a Gov­er­nador Archer e de lá para Gonçalves Dias revis­i­tando min­has lem­branças.

Nos anos que pas­sei em Gov­er­nador Archer, morei na Rua do Sossego, por trás da casa adquirida ou alu­gada para estu­dar­mos, ficava (ou ainda fica) um campo de fute­bol por onde cor­tava cam­inho até a Escola Alde­nora Belo, onde estu­dava, depois morei na casa da minha irmã Bibia, na Rua Sete de Setem­bro.

Já na saída lembre-​me do sítio do primo Arlindo, filho de um irmão de minha mãe, eu, minha irmã Ana e suas fil­has Elianai e Etnã, passá­va­mos tardes brin­cado em banho do ter­reno.

Adi­ante pas­samos pelo pé de tamarindo onde, quando cri­ança, com meu pai ou algum irmão mais velho, a cav­alo ou de burro, pará­va­mos para comer algum de seus fru­tos, se era a estação. Mais à frente à entrada do povoado Vences­lau e na outra margem a entrada do Cen­tro do Came­los. Logo depois, pas­sando por onde out­rora fora um igarapé grande e de águas tur­bu­len­tas, que os bur­ros tin­ham difi­cul­dades em vencer, cheg­amos ao Cen­tro Novo.

Via­java com Afrânio e o sobrinho Wal­lace e ia dizendo o que era cada coisa, de quem fora cada casa, o que acon­te­cera em cada local.

Paramos no local onde ficava a casa onde nasci e nosso cur­ral – próx­imo dali foi con­struída a casa da minha irmã que adquiriu a pro­priedade.

Em seguida paramos no cemitério e em seguida na casa de um primo, até vencer­mos aquela légua para chegar em Gonçalves Dias.

Tudo já tão difer­ente da minha infân­cia.

As lem­branças do que pas­sei tornaram-​se um tesouro só meu. O que pas­sei no pomar, o que senti na serra, os risos no igarapé ou no açude, os medos que senti ao escor­re­gar … out­ros até lem­bram, mas são out­ras lem­branças.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.