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Já não se recon­hecem os amigos

Escrito por Abdon Mar­inho


Já não se recon­hecem os amigos.

Por Abdon C. Mar­inho.

DURANTE a última incursão pela baix­ada e litoral norte do estado o amigo Max Harley contou-​nos um fato curioso que serve de guia ao pre­sente texto.

Voltava ele com alguns cole­gas da região Tocan­tina (acho que dois) e já no enfado da viagem mis­tu­rado ao cansaço do sono noturno – vez que saíra de Imper­a­triz pelas 16 horas –, preocupou-​se com a pos­si­bil­i­dade do colega a quem pas­saram o volante na altura de Santa Inês viesse a dormir, foi quando teve uma ideia.

Do nada disse: — rapaz, se tem uma pes­soa que eu admiro nesse mundo é o Lula.

Foi o que bas­tou para o colega que estava no volante “acor­dasse” e começasse uma pre­gação con­tra o pres­i­dente da república e exal­tasse as qual­i­dades do ante­ces­sor, ini­ciando por dizer: — muito me admira, doutor Max, que você diga uma coisa dessas.

A estraté­gia de Max para que se man­tivessem acor­da­dos deu certo e chegaram sãos e salvos na ilha para me con­tarem a história, ainda que ten­ham “sofrido” até as altas horas madru­gada com um debate político sem qual­quer sen­tido.

O amigo Max disse-​nos que o colega tornou-​se de tal fanático político que fez uma fotomon­tagem dele abraçando seu ídolo.

O Brasil é um país doente.

Já disse algu­mas vezes aqui mesmo a situ­ação do Brasil no que­sito relações inter­pes­soais tornou-​se uma des­graça.

Já não nos reuni­mos para falar sobre quais­quer assun­tos, tomar um café, um vinho ou chope sem que os ditos pro­tag­o­nistas da política nacional se façam pre­sentes e estraguem o momento de con­frat­er­niza­ção das pes­soas.

São laços famil­iares abal­a­dos, amizades des­feitas por conta de dois seres humanos que não têm qual­quer inter­esse ou sen­ti­mento de empa­tia pelos seus fanáti­cos seguidores.

O cidadão hon­esto e livre das paixões que se ocupe de fazer uma “linha do tempo” desde que tais lid­er­anças ingres­saram na política verá que o que sem­pre os nor­teou foram os próprios inter­esses, os inter­esses famil­iares, de uns poucos nos seus entornos e quando muito de alguma agremi­ação.

Enquanto isso, na planí­cie, em cam­panha sem fim, a pat­uleia até se mata – no sen­tido lit­eral mesmo –, por tais lid­er­anças.

A impressão que tenho é o brasileiro pre­cisa de um divã, a carên­cia afe­tiva, a ponto de “cegá-​los” em torno de um único assunto é caso para estudo psiquiátrico.

O debate político no Brasil deixou de ser algo saudável para se tornar uma coisa raivosa, sem que ninguém respeite o ponto de vista do outro e sem que os pon­tos de vis­tas não trans­bor­dem para desavenças pes­soais.

A situ­ação chegou a tal ponto que já está difí­cil “recon­hecer” ami­gos com quem sem­pre con­viveu se har­moni­ca­mente por anos, décadas, uma vida inteira.

Muito pior que isso, as pes­soas não se dão conta do quanto esse per­ma­nente debate político as tornaram chatas, intragáveis. Tudo agora é “faz o L”, é “Bozo”, é “naz­i­fascista” e todas as demais tolices que a grande maio­ria delas não sabe o que sig­nifica.

Um debate hor­ro­roso … e sem fim.

Se já era ruim o debate político cir­cun­scrito às fron­teiras nacionais, agora temos debate­dores políti­cos transna­cionais, com as amizades divi­di­das entre trump­is­tas e não trumpistas.

Não bas­tasse “emen­dar uma eleição na outra” agora colo­caram a eleição amer­i­cana entre elas.

Uma lou­cura sem fim, uma vez que os amer­i­canos sem­pre tiveram pro­fundo desprezo por tudo e todos que esteja abaixo do Rio Grande (a divisa entre Esta­dos Unidos e Méx­ico).

Foi uma coisa ridícula de assi­s­tir os brasileiros “torcendo” como loucos a favor de Trump nas últi­mas eleições amer­i­canas e depois por ocasião da posse, como se ele tivesse qual­quer inter­esse pelos países lati­nos que não o agir como legí­timo rep­re­sen­tante do impe­ri­al­ismo ianque.

Veja todos os amer­i­canos, sejam democ­ratas ou repub­li­canos, pen­sam neles, neles mes­mos e se sobrar algum tempo em como lucrar com algo ainda que isso sig­nifique a destru­ição do plan­eta.

Em plena emergên­cia climática, muitos brasileiros cer­raram fileiras na defesa jus­ta­mente daquele que encarna como nen­hum outro a ideia do lucro pelo lucro, que não tem qual­quer com­preen­são da importân­cia de se preser­var o meio ambi­ente, e tudo mais de hor­rendo que possa existir.

Chega a ser patético ter­mos que ouvir: — ah, o Trump vai defender a liber­dade de expressão.

O Trump vai defender os inter­esses das Big Tech’s para que elas façam o que quis­erem sem pagarem ou se respon­s­abi­lizarem pelos danos que pos­sam causar as pessoas.

As pes­soas não con­seguem enten­der que a “liber­dade de expressão” que muitos defen­dem é aquela que não os con­trariem em nada.

O próprio Trump já no dia seguinte à posse fez crit­i­cas mal-​educadas e gros­seiras con­tra o ser­mão pro­ferido por um bispa que na sua pre­gação pediu clemên­cia, respeito e trata­mento digno para os imi­grantes, refu­gia­dos e gays.

O tol­er­ante Trump, defen­sor ardoroso da liber­dade de expressão (estou sendo sar­cás­tico) chegou a exi­gir que a reli­giosa, que nada disse demais, se retratasse.

Uma coisa é certa, o falso lib­ertário não enganou ninguém, faz o que disse que faria, incluindo as coisas que não pode­ria fazer do ponto de vista das leis, porque o seu obje­tivo é “jogar para a plateia” para os seus fanáti­cos seguidores.

Já no primeiro ou segundo dia de mandato disse, com toda fan­far­rice tão car­ac­terís­tica da arrogân­cia amer­i­cana, que não pre­cisa do Brasil, que o Brasil, sim pre­cisa deles.

Acred­ito que os nos­sos patri­o­tas aplaudiram.

Já na primeira sem­ana as primeiras levas de brasileiros estavam sendo depor­ta­dos para o Brasil – não dis­cuto se estão cer­tos ou erra­dos em relação a imi­gração ile­gal –, mas, a forma, esses cidadãos foram depor­ta­dos alge­ma­dos e acor­renta­dos, acred­ito que nem ani­mais se deve trans­portar de tal forma.

Acred­ito que os patri­o­tas brasileiros vibraram.

O Brasil inau­gurou a política da “sabu­jice impe­ri­al­ista” e pior, nem é por uma nação, mas por uma pes­soa.

É como se estivésse­mos diante da visu­al­iza­ção da expressão: “o escravo ama as mãos que segura o chicote que o açoita”.

Não me recordo de ter viven­ci­ado tanto com­plexo de vira-​lata, tanta “panaquice”, tanta falta de respeito e amor próprio.

Sem­pre gostei muito de política. Desde os meus doze ou treze anos que debato e estudo sobre o assunto e sem­pre gostei de falar de política.

Nos últi­mos tem­pos, diante de tudo que vive­mos, deixei de fazer isso – quando muito, deixo para a pos­teri­dade min­has opiniões escritas, como essas –, quando alguém fala de polit­ica perto de mim, olho para o tempo e digo: “será que vai chover?”; ou desvio do assunto com um outro tema; muitas das vezes até con­cordo com o que o inter­locu­tor diz ape­nas para que ele me poupe e se poupe do des­gaste da amizade; o medo do infind­ável debate político tem me feito evi­tar reuniões com os ami­gos.

Muitos desses ami­gos tornaram-​se de tal forma rad­i­cais que já não os recon­heço, e para evi­tar des­gastes evito cer­tos temas ou encontrá-​los.

Acred­ito que muitas pes­soas sen­sa­tas passem por igual drama. Somos ami­gos das pes­soas mas abom­i­namos suas con­vicções políti­cas rad­i­cais – e todos se tornaram rad­i­cais.

Isso é muito triste.

Há uma frase de Jean Mes­lier (16641729), que é a seguinte: «O homem só será livre quando o último rei for enfor­cado nas tri­pas do último padre».

O ambi­ente político brasileiro da atu­al­i­dade é tão hor­rendo que se pode­ria ado­tar, ainda que em sen­tido metafórico, a expressão: “O Brasil só será um país livre quando o último bol­sonar­ista for enfor­cado nas tri­pas do último lulista”. Ou vice versa.

Abdon C. Mar­inho é advogado.

P.S. Me poupem de quer­erem me con­vencer de algo a respeito do pre­sente texto.

Imper­adores e ladrões.

Escrito por Abdon Mar­inho


Imper­adores e Ladrões.

Por Abdon C. Marinho.

AO MEU SEN­TIR um dos pon­tos mais emblemáti­cos da obra apel­i­dada de “O Ser­mão do Bom Ladrão”, do padre Antônio Vieira e pro­nun­ci­ado na Mis­er­icór­dia de Lis­boa em 1655, e não na Capela Real, como o próprio autor expõe no ini­cio da pre­gação é aquela parte em que o pároco é o que narra o encon­tro de Alexan­dre Magno com um pirata quando esse nave­g­ava com sua poderosa armada pelo Mar Eri­teu em sua cam­panha para con­quis­tar a Índia.

Narra o pároco que tendo sido levando à pre­sença de Alexan­dre um pirata que por ali andava a roubar pobres pescadores. Alexan­dre repreendeu-​o muito por andar em tão mau ofi­cio, o pirata que não era medroso ou lerdo, respon­deu ao poderosís­simo imper­ador, o mais poderoso de todos os tem­pos com estas palavras, segundo Vieira: –– Basta, Sen­hor, que eu, porque roubo em um barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?

Vejam a pro­fun­di­dade de tais palavras. Ambos eram ladrões o que os difer­en­ci­ava era o mon­tante do roubo. Enquanto um roubava ape­nas uma pes­soa, uma residên­cia, o outro roubava nações inteiras, espo­li­ava os reinos e fazia parte de sua pop­u­lação escrava.

Ao pirata que roubava ape­nas uma pes­soa o pop­u­la­cho pedia que sofresse duras penas, que fosse morto em praça pública. Ao outro o mesmo povo ren­dia lau­tas hom­e­na­gens.

Mil­hares de anos se pas­saram desde que ocor­reu o suposto encon­tro entre o imper­ador e o pirata, quase 400 anos ape­nas que o fato foi nar­rado pelo pároco naquela manhã de domingo na Mis­er­icór­dia de Lisboa.

Qual­quer um afas­tado das paixões exam­ine os fatos da atu­al­i­dade haverá de con­cor­dar que aquilo que disse Vieira nunca esteve tão atu­al­izado: os ver­sa­dos na arte do roubo e salteiam esta­dos inteiros são fes­te­ja­dos enquanto aque­les que roubam tostões ou mesmo para sobre­viver são reprim­i­dos ou punidos. E, muitas das vezes os repres­sores e/​ou apli­cadores das sanções são aque­les que tem como prin­ci­pal ofí­cio roubo, o latrocínio de esta­dos inteiros.

E citando São Basilio Magno dizia o pre­gador: “Não são só ladões os que cor­tam as bol­sas ou espre­itam os que vão ban­har, para lhes col­her a roupa; os ladrões que mais própria e dig­na­mente mere­cem este título, são aque­les a quem os reis encomen­dam os exérci­tos e legiões, ou o gov­erno das provín­cias, ou a admin­is­tração das cidades das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despo­jam os povos”.

Mas deix­e­mos as lições de Vieira para aden­trar à cru­enta real­i­dade dos nos­sos tempos.

A primeira per­gunta que o leitor mais atento fará é que as lições de Vieira pre­gadas a exatos 370 anos tem com os nos­sos dias. E a resposta a tal inda­gação não pode ser outra senão: tudo. Seja em relação aos déspotas de agora, seja em relação as mes­mas hipocrisias.

Os exem­p­los disso estão aí, às de todos. Não pre­cisamos sequer descer aos rincões do atraso para constatá-​los.

Vejam a Europa, não faz muito tempo uma nação inva­diu outra numa clara guerra de con­quista imposto indizível sofri­mento a toda uma pop­u­lação: fome, frio, deslo­ca­mento em massa, seque­stros de cri­anças, ocu­pação ter­ri­to­r­ial e todos os demais fla­ge­los que uma guerra traz.

Muito emb­ora haja uma resistên­cia da nação inva­dida e apoio de muitos países à mesma o o país inva­sor e o seu tirano de plan­tão encon­tra quem o apoie e o saude como se fosse algo difer­ente do que é: um déspota que causa sofri­mento a pes­soas inocentes.

Vejamos um outro exem­plo: não há quem não saiba que o régime venezue­lano tornou-​se uma ditadura fraud­u­lenta e que a última eleição perderam ver­gonhosa­mente e à cus­tas da opressão se man­tém no poder.

Ainda assim, muitas nações ditas democráti­cas (inclu­sive o Brasil) lá estiveram pre­sentes como a chance­lar aquela excrescên­cia.

Vi inclu­sive “autori­dades” e lid­er­anças políti­cas faz­erem coro para o régime venezue­lano como se ele fosse um mod­elo de democ­ra­cia.

E que papelão fez o Brasil em todo esse processo.

Fruto da lou­cura de nos­sos tem­pos o grande império do norte elegeu um apren­diz de tirano para o cargo mais impor­tante do mundo. Os Esta­dos Unidos, para ficar no exem­plo de Vieira, é a Macedô­nia de Alexan­dre com muito mais pode­rio bélico.

E o que faz o Alexan­dre genérico? Antes mesmo de assumir já falava em retomar o Canal do Panamá, que inte­gra uma nação sober­ana; em “tomar” a unidade autônoma da Groen­lân­dia, que inte­gra o reino da Dina­marca desde sem­pre; e até em tornar o Canadá o 51º estado amer­i­cano.

Ah, isso não é para ser lev­ado a sério. Como não levar a sério o homem que detém o maior pode­rio bélico do mundo e que tem o poder para destruir o mundo com as decisões que toma ou que insinua tomar.

Como igno­rar o que diz um homem que pelo pode­rio que tem, usando cargo público para o qual nem tomara posse fez um oper­ação finan­ceira que lhe ren­deu lucros pes­soais de mais de 5 bil­hões de dólares?

Percebe-​se clara­mente que não haverá dis­tinção entre delírios e real­i­dade. Entre o poder público e os dese­jos de lucros pri­va­dos.

As coisas são ditas e divul­gadas com tamanha nat­u­ral­i­dade que fico com a impressão que eu sou o alienista, que eu estou errado ao não encon­trar nat­u­ral­i­dade em nada disso, ao achar um absurdo tais colo­cações ou que se uti­lize do poder público para auferir lucros pri­va­dos.

Mas se os déspotas e tira­nos pouco ou nada mudaram nos últi­mos milênios os hipócritas tam­bém per­manecem os mes­mos.

Vejam que os mes­mos que fin­gem indig­nação com o régime dita­to­r­ial venezue­lano são os mes­mos que aplau­dem e que têm orgas­mos múlti­p­los a cada lou­cura que é pro­ferida pelo topetudo amer­i­cano.

A hipocrisia parece não guardar qual­quer respeito pelas pes­soas que ousam pensar.

Não faz muito tempo o dita­dor venezue­lano (sou um dos poucos que dizem isso há mais de dez anos) anun­ciou ao mundo que iria anexar setenta por cento do Suri­name, a tal Provín­cia de Esse­quibo. O mundo quase inteiro veio abaixo diante do despautério.

Hoje vemos o líder do maior país do mundo dizer que vai retomar, com força mil­i­tar, o Canal do Panamá, que rep­re­senta quase toda a econo­mia daquele país; que vai “adquirir” a Groen­lân­dia, que inte­gra o reino da Dina­marca e que vai “anexar” o Canadá como 51º estado amer­i­cano, e os mes­mos hipócritas nada dizem.

O entendi­mento deles (hipócritas) é que o dita­dor venezue­lano teria mais chances de cumprir suas ameaças que o “imper­ador” do norte?

E se tão ciosos pela pro­bidade admin­is­tra­tiva por que silen­ciam absur­da­mente diante da con­fusão de inter­esses públi­cos e pri­va­dos que começaram a praticar?

Como bem assen­tava Vieira e que serve como uma luva para os dias atu­ais, o que difere imper­adores de piratas é ape­nas o quanto são capazes de roubar. Aquele que rouba pouco é ladrão, aquele rouba muito é imper­ador.

Abdon C. Mar­inho é advogado.

Não Alfabetizado.

Escrito por Abdon Mar­inho


Não Alfa­bet­i­zado.

Por Abdon C. Marinho.

Muitos se per­gun­tam (e me per­gun­tam) sobre o meu inter­esse pela causa da edu­cação, sobre o sonho e desejo de ver cri­anças e jovens edu­ca­dos com qual­i­dade.

Já disse em diver­sas opor­tu­nidades que os meus pais eram agricul­tores, pobres e “anal­fa­betos por parte de pai, mãe e parteira”.

Emb­ora tal colo­cação tenha ares de chiste, na ver­dade sem­pre foi algo muito triste, sobre­tudo para o meu pai, já que minha mãe tinha alguns con­hec­i­men­tos primários, mas, infe­liz­mente, deixou-​nos bem cedo, mor­rendo no parto do décimo filho nascido com vida quando estava na faixa dos quarenta anos – tinha cinco anos de idade quando deu-​se a tragé­dia, a ter­ceira das mul­heres da família a “mor­rer de parto” em ter­ras maran­henses.

Outro dia minha irmã mais velha encon­trou um retratista para gravar uma foto de meu pai em uma louça para colo­car na sua der­radeira morada. Como tinha esque­cido a data exata do seu nasci­mento (?) acionou-​me atrás de tal infor­mação. Dei-​lhe mês e ano mas tinha dúvida sobre o dia, razão para acionar o irmão Mar­cell Mar­inho, filho do segundo casa­mento dele que local­i­zou e me man­dou a fotografia do seu RG.

Ao rece­ber a repro­dução do doc­u­mento vi, ao lado da foto, a expressão “Não Alfa­bet­i­zado”, grafada por máquina de escr­ever sobre o local onde dev­e­ria con­star a assi­natura do portador.

A emoção de reen­con­trar aquele doc­u­mento trouxe-​me a memória do quanto meu pai não gostava de ser anal­fa­beto, das vezes que dizia que dev­eríamos estu­dar para ser­mos alguém na vida; de que o único patrimônio que pode­ria nos deixar seria “o con­hec­i­mento” que não teve a opor­tu­nidade de ter; que gostaria de ter tido a opor­tu­nidade de ter con­hec­i­mento; não ter con­hec­i­mento era como ser um “cego”, etc.

— Ah, meu filho, o con­hec­i­mento ninguém nunca vai lhe tomar ou roubar, será seu para sem­pre. Cos­tu­mava dizer.

Lem­bro que ainda ten­tou alfabetizar-​se através do Mobral (antigo mod­elo de edu­cação de adul­tos anal­fa­betos que depois foi extinto). Não deu muito certo por motivos que ignoro.

Nascido em Angi­cos, Rio Grande do Norte, em 1929, com menos de um ano enfren­tou a primeira seca, em 1930, depois veio a grande seca de 1932/​33, depois a de 1940, a escassez dos anos de guerra, mais uma seca no final dos anos quarenta até que meu avô se can­sou, reuniu todos fil­hos, noras, gen­ros, já alguns netos, pri­mos e agre­ga­dos e resolveram migrar para Maran­hão. Era o iní­cio dos anos cinquenta.

A Saga de José Cal­heiro de Mar­inho já foi con­tada em outra opor­tu­nidade.

Conta a lenda famil­iar que o patrimônio ameal­hado por meu pai teve origem em um ovo de gal­inha que gan­hara de uma tia. Esse ovo virou uma gal­inha, depois um plantel, depois out­ros ani­mais, comér­cio e por aí a fora.

Ape­sar de pobres e anal­fa­betos, como dev­e­riam ser todos os pais, os meus tin­ham a pre­ocu­pação e o desejo que os fil­hos tivessem uma vida bem mel­hor do que aquela que tiveram.

Assim, logo que pud­eram colo­caram os mais vel­hos para estu­darem em Pedreiras e/​ou Gov­er­nador Archer, ini­cial­mente em casa de par­entes e/​ou ami­gos.

Mesmo depois da tragé­dia que foi a morte de minha mãe, deixando uma “escad­inha” de fil­hos de zero a 20 anos – o que exigiu uma reor­ga­ni­za­ção famil­iar –, meu pai insis­tiu que con­tin­uásse­mos estu­dando. Para isso alu­gou uma cas­inha sim­ples na Rua do Sossego, em Gov­er­nador Archer. E nos man­tinha, sem luxos, mais com os supri­men­tos para poder­mos nos ali­men­tar e estu­dar.

Uma vez – acho que a única vez –, deu-​me uma surra (que cer­ta­mente doeu mais nele que em mim) ao saber que eu estava fug­indo da escola. Ia para o Alde­nora Belo, saindo pelos fun­dos da casa e pas­sando por um campo de fute­bol, entrava na escola mas logo que tinha uma opor­tu­nidade saía para brin­car na rua.

Está­va­mos de férias ou em um final de sem­ana no nosso povoado quando ele tomou con­hec­i­mento do fato “dedu­rado” por um dos mais vel­hos. Já era “boca da noite” quando tirou o “cin­turão” de couro e deu-​me uma surra “con­ver­sada” sobre a importân­cia de estu­dar­mos.

Fui dormir de “couro quente” e nunca mais quis saber de fugir da escola.

Os pais que ver­dadeira­mente mere­cem tal título até quando nos dis­ci­plinam o fazem para nos aju­dar – porque faz parte da sua natureza pro­te­gerem os fil­hos.

Os anos 30 e 40 do século pas­sado não foram fáceis para o meu pai e seus irmãos, tin­ham que tra­bal­har de sol a sol e enfrentar as secas do sertão nordes­tino. Quando pensou-​se que não, já tin­ham que con­tin­uar ou a enfrentar uma labuta ainda maior para cri­arem os próprios fil­hos.

Em 1994, quando mor­reu o meu pai e alguns dos meus tios, já estava mais ou menos encam­in­hado na vida, já cur­sava Dire­ito na UFMA e já tinha pas­sado pela exper­iên­cia de aju­dar a coor­denar uma cam­panha de gov­er­nador de Estado. Já era rel­a­ti­va­mente con­hecido.

Nos anos ante­ri­ores, nas vezes que que con­ver­sei com meu pai, por ocasião de férias esco­lares ou de tra­balho, vez que aos 15 anos deixei o inte­rior para fazer o ensino médio no Liceu Maran­hense, em São Luís, meu pai sem­pre falou da importân­cia dos estu­dos e o quanto lamen­tava não ter tido essa opor­tu­nidade.

O meu inter­esse pela edu­cação é fruto dessa história de lutas da minha família que vem desde o meu avô, meus pais, que, emb­ora anal­fa­betos e pobres nos ensi­naram que através do con­hec­i­mento podemos mudar nosso des­tino e o des­tino de tan­tos out­ros que estão ao nosso redor.

Fui o primeiro da minha família a formar-​me advo­gado em 1996. Pas­sei por todas eta­pas da edu­cação pública do inte­rior, a escol­inha de “latada”, a unidade integrada, o ginasial noturno, o ensino médio, até a fac­ul­dade.

Depois de mim, muitos out­ros vieram, advo­ga­dos, médi­cos, pro­fes­sores, odon­tól­o­gos, nutri­cionistas, enfer­meiros e tan­tas out­ras áreas.

Outro dia pas­sei por uma emoção rara: vi numa rede social qual­quer ou grupo de What­sApp que o primeiro parto “cesar­i­ano” feito em Gonçalves Dias, deu-​se pelas mãos do meu sobrinho Wal­lace Andrade Mar­inho.

Para ele pode não ter sig­nifi­cado nada de espe­cial diante das cen­te­nas de par­tos que real­iza todos os meses. Mas para mim foi difer­ente, lembrei-​me que minha mãe (sua avó paterna) e out­ras duas tias min­has mor­reram de parto por falta de acom­pan­hamento médico ade­quado.

Quando falo a um dos meus clientes, gestores munic­i­pais ou estad­ual, secretários, que devem batal­har para ofer­e­cerem uma edu­cação de qual­i­dade, nada mais faço do que dizer o óbvio: qual­quer cri­ança é capaz de “fazer” o seu próprio des­tino se a ela for ofer­tada as condições para isso.

Foge a minha com­preen­são que os gestores não enten­dam que devem ofer­tar aque­les que admin­is­tram as mes­mas condições de apren­diza­gem que ofer­tam aos próprios fil­hos.

O meu pai foi um “não alfa­bet­i­zado” que teve a com­preen­são de que valia a pena edu­car os fil­hos para que estes edu­cassem os seus e rompessem o ciclo de mis­éria e dessem o mel­hor de si para a sociedade e até sal­vassem vidas.

A edu­cação é o cam­inho e a solução. A edu­cação muda e salva vidas.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.