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A ver­dade de cada um passa longe de ser a ver­dade de todos

Escrito por Abdon Mar­inho

A ver­dade de cada um passa longe de ser a ver­dade de todos.

Por Abdon C. Marinho.

ESSE é um texto para se ler desarmado.

Em 15 de março de 1985 acor­damos estu­pefatos com a notí­cia de que Tan­credo Neves o pres­i­dente eleito e por quem tanto torce­mos – antes, na cam­panha das dire­tas e depois no embate com Paulo Maluf, no colé­gio eleitoral, em janeiro do mesmo ano –, fora inter­nado na madru­gada e não mais tomaria posse naquele dia.

Naquela manhã ainda se deba­tia se seria dado posse a José Sar­ney – que ao longo da car­reira política até então dera sus­ten­tação ao régime mil­i­tar, inclu­sive, fora o pres­i­dente da ARENA até sair para ingres­sar no MDB e ser o can­didato a vice-​presidente na chapa –, ou ao dep­utado Ulysses Guimarães que fora o líder da oposição ao régime mil­i­tar durante toda vida política.

Como sabe­mos, Ulysses Guimarães foi con­tra tal arranjo e um dos defen­sores da nor­mal­i­dade democrática com a posse do vice-​presidente eleito, José Sar­ney, que assumiu interinamente.

Daquele dia até o 21 de abril seguinte o Brasil acom­pan­hou, com os olhos gru­da­dos na tele­visão ou ouvi­dos nos rádios, o calvário de Tan­credo Neves. Coube ao jor­nal­ista Antônio Brito, porta-​voz do pres­i­dente eleito – e que depois se tornaria gov­er­nador do Rio Grande do Sul –, anun­ciar a tragé­dia.

O 15 de março de 1985 teve esse misto de sen­ti­men­tos: era o fim do régime mil­i­tar – cujo o último presidente-​general, João Bap­tista de Figueiredo, recusou-​se a pas­sar a faixa a José Sar­ney, deixando-​a com um aju­dante de ordens –, mas com um amar­gor de con­tinuidade.

Ofi­cial­mente a ditadura chegara ao fim.

O restante da história todos con­hece­mos (ou dev­eríamos con­hecer). Sar­ney tirou os cinco anos de mandato sob o signo da descon­fi­ança e da ile­git­im­i­dade pop­u­lar – o povo que­ria Tan­credo –, cumpriu os com­pro­mis­sos da cam­panha, como reti­rar da ile­gal­i­dade par­tidos e enti­dades, cono­tar eleições livres e uma nova Con­sti­tu­ição Fed­eral, entre out­ros.

E o tempo passou.

Em 15 de março de 2025 comemorou-​se os quarenta anos da rein­sta­lação da democ­ra­cia em nosso país. Muitas saudações, matérias espe­ci­ais nos jor­nais para cel­e­brar os fatos de quarenta anos atrás.

Num daque­les para­doxos que só a história caberá avaliar, no dia seguinte alguns mil­hares de pes­soas foram às ruas para pedir anis­tia aos que, dois anos antes, em 8 de janeiro de 2023, suposta­mente, ten­taram “der­rubar” o gov­erno eleito.

Vejam que situ­ação inter­es­sante: em um dia comem­o­ramos quarenta anos do retorno da democ­ra­cia em nosso país; no dia seguinte, pede-​se anis­tia para aque­les que ten­taram romper com o ciclo democrático e “reim­plan­tar” um régime autoritário no país, nova­mente sob o comando de mil­itares que sessenta anos antes tomaram o poder e só o devolveram às cus­tas de muitos sac­ri­fí­cios, assas­si­natos, tor­turas, bani­men­tos, exílios, vinte e um anos depois.

O clima de polar­iza­ção política impede o cidadão comum, aquele não se encon­tra nos extremos do debate político, de enten­der o que vem acon­te­cendo no Brasil e como deve ou se deve se posi­cionar.

Algu­mas per­gun­tas são impor­tantes para serem feitas:

Quarenta anos após encer­rar­mos a ditadura mil­i­tar, vive­mos numa democ­ra­cia como a fes­te­jada no 15 de março?

Em 8 de janeiro de 2023 viven­ci­amos uma ten­ta­tiva de golpe con­tra essa democracia?

Se vive­mos em uma democ­ra­cia seria legí­timo que se ten­tasse um golpe para devolver nova­mente o poder aos mil­itares e seus aliados?

Se não vive­mos em uma democ­ra­cia o que efe­ti­va­mente se fes­te­jou no 15 de março de 2025?

Se viven­ci­amos uma ten­ta­tiva de golpe con­tra a democ­ra­cia em 8 de janeiro de 2023, os seus par­tic­i­pantes mere­cem respon­der por ela?

O tema da dis­cussão da anis­tia me parece ser uma pauta incon­tornável e quer me pare­cer urgente diante da sev­eri­dade (?) das penas apli­cadas pelo Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF aos envolvi­dos.

Quer me pare­cer que ambas as “facções” políti­cas utilizam-​se da metá­fora do “final de campe­onato” a seu favor. Essa metá­fora é a seguinte: imag­inem um final de campe­onato impor­tante com o está­dio fervil­hando de torce­dores, todos na incon­tida emoção; o jogador marca o gol da vitória, corre para o cen­tro do campo e é abraçado, agar­rado, bei­jado por um, por dois, por três ou mais com­pan­heiros de time. Se você tirar o final de campe­onato, o está­dio lotado, os torce­dores emo­ciona­dos, o clima de eufo­ria, o gol da vitória, o terá será ape­nas dois, três, qua­tros ou mais homens se agar­rando e se bei­jando, muda total­mente o con­texto.

O que acon­tece na atual quadra política brasileira é mais ou menos isso. De um lado temos a facção que sus­tenta ter havido uma absurda ten­ta­tiva de golpe, com des­do­bra­men­tos inimag­ináveis, com mortes, assas­si­natos de autori­dades, reim­plan­tação de uma ditadura civil-​militar, é tudo que isso possa rep­re­sen­tar e de outro lado a facção política que sus­tenta não ter havido nada disso, com pes­soas sendo pres­sas por terem exer­cido ape­nas sua liber­dade de expressão e de protesto con­tra o gov­erno que acabara de se insta­lar. Em tal con­texto “pin­tam” que uma deter­mi­nada sen­hora, mãe de família, com dois fil­hos menores, foi presa e encontra-​se em vias de ser con­de­nada, tão somente por haver pichado com batom ver­melho a está­tua da Justiça, uma outra por ter ido passear na Praça dos Três Poderes por ocasião do ato; ou por ido tirar fotos e escr­ever sobre os fatos que estavam acon­te­cendo.

Ora, em tal con­texto, o Brasil seria uma das piores ditaduras do mundo, talvez com­parada a ditadura norte-​coreana que impõe penas de bani­men­tos ou de tra­bal­hos força­dos e até de morte a alguém que deixou de ado­rar o dita­dor de plan­tão ou que teve um mem­bro da família que fugiu do país.

Quem em sã con­sciên­cia não achará absurdo alguém ser con­de­nado a dura pena por haver pin­tado com batom uma está­tua? Ou mesmo um crime de dano mais grave? Quem achará razoável alguém ser con­de­nado a quase vinte anos de prisão por um crime de dano? Prati­ca­mente a mesma pena de um homicí­dio sim­ples.

Quando digo que a ver­dade de cada um passa longe da ver­dade de todos é porque acred­ito que, sim, ten­taram um golpe de estado. Golpe esse que vinha sendo ungido desde a ascen­são ao poder do ex-​presidente através dos seus ataques con­stantes aos demais poderes e insti­tu­ições da República, prin­ci­pal­mente o Poder Judi­ciário, em seus diver­sos seg­men­tos. Essa ten­ta­tiva de golpe escalou com o resul­tado das urnas des­fa­voráveis ao mesmo ex-​presidente, os diver­sos ques­tion­a­men­tos à lisura do pleito e a ordem de acam­pa­men­tos sin­croniza­dos em frente aos quar­téis como estraté­gia para forçar as forças armadas a tomarem o poder.

Nesse con­texto, o movi­mento de 8 de janeiro de 2023, não foi um movi­mento político espon­tâ­neo, pelo con­trário, foi plane­jado e exe­cu­tado no sen­tido de provo­car uma reação dos atu­ais inquili­nos do poder com pos­sível repressão vio­lenta e der­ra­ma­mento de sangue, capaz de jus­ti­ficar, em um ato der­radeiro, a equiv­o­cada inter­pre­tação do artigo 142 da Con­sti­tu­ição Federal.

Por motivos diver­sos o plano fra­cas­sou, seja porque as forças de segu­rança não rea­gi­ram (ou só foram rea­gir bem depois já no sen­tido de reduzir pre­juí­zos e reti­rar as pes­soas dos pré­dios públi­cos), seja porque, mesmo com o povo nas ruas, as forças armadas não quis­eram par­tic­i­par da falsa quar­te­lada.

A ten­ta­tiva de golpe acabou por se tornar uma espé­cie de “crime impos­sível”.

Assim, como acred­ito que houve uma ten­ta­tiva de golpe (ou uma orga­ni­za­ção política para uma sub­ver­são à ordem jurídica) acred­ito, tam­bém, que muitos daque­les cidadãos que par­tic­i­param dos even­tos do 8 de janeiro de 2023, em maior ou menor gradação, emb­ora ansi­assem pela der­rubada do gov­erno recém esta­b­ele­cido, não tin­ham con­sciên­cia de que estavam par­tic­i­pando de um golpe de estado ou da gravi­dade que tal fato tinha.

Essas pes­soas, esses cidadãos, foram lit­eral­mente usa­dos como “bucha de can­hão” dos orga­ni­zadores da falsa quar­te­lada. Imag­ino até que ten­ham tor­cido para que tivessem sido víti­mas fatais de uma reação poli­cial. Uns trinta mor­tos esten­di­dos no chão e estava pronta a des­culpa per­feita para o retro­cesso insti­tu­cional.

Acred­ito que o STF (não dis­cu­tirei sobre a com­petên­cia nesse texto) come­teu o equívoco de realizar o jul­ga­mento dos fatos ocor­ri­dos no 8 de janeiro de 2023 “de baixo pra cima” ao invés de jul­gar “de cima pra baixo”. É dizer: dev­e­ria ter ini­ci­ado por jul­gar os “grandes”, os que tra­ma­ram, plane­jaram, añuíram, con­cor­daram ou par­tic­i­param de alguma forma, inclu­sive, finan­ceira­mente e só depois, anal­isar e jul­gar as con­du­tas dos “bagrin­hos”, tam­bém, com a per­spec­tiva de que muitos são igual­mente víti­mas, foram usa­dos e ilu­di­dos pelos ver­dadeiros líderes da trama.

Essa cautela – e um jul­ga­mento justo –, evi­taria que se cri­assem nar­ra­ti­vas acerca do que acon­te­ceu e do que se ten­tou fazer no Brasil.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.

O Cen­tro Novo — Parte II.

Escrito por Abdon Mar­inho


O Cen­tro Novo – Parte II.

Por Abdon C. Marinho.

PAS­SAVA, certa vez, pelo Cen­tro Novo – ape­sar de ser filho da terra minha área de atu­ação sem­pre foi out­ros recan­tos do estado, nunca tra­bal­hei nos municí­pios da região, fazendo com que vis­ite meu tor­rão menos do que gostaria, o que acaba por jus­ti­ficar aquele velho adá­gio de que “santo de casa não faz mila­gres”, rsrsrs –, mas, numa daque­las vis­i­tas “de pas­sagem” ou para tratar de algo bem especí­fico, avis­tei uma escol­inha em um ponto ele­vado: Escola Munic­i­pal Diolino Cal­heiro.

Fiquei emo­cionado com a sin­gela hom­e­nagem ao meu tio tão amado.

Enquanto con­tava aos ami­gos de viagem sobre o meu tio a memória me reme­tia há dezenas de anos, reme­tia à minha doce infân­cia.

Lembrei-​me que quando voltava para casa, vindo de Gov­er­nador Archer, nos finais de sem­anas ou durante as férias, algu­mas coisas me cati­vavam a atenção, uma delas eu enorme pé de tamarindo que ficava à meio cam­inho da viagem, depois as entradas dos povoa­dos Vences­lau, à dire­ita e do Cen­tro dos Came­los, à esquerda (nunca soube se por lá pas­sou algum camelo alguma vez), depois atravessava-​se um grande ria­cho de águas bravas no inverno para em seguida estar­mos pro­pri­a­mente no Cen­tro Novo, ao dobrar­mos a curva avistá­va­mos a casa do sen­hor Batista, do velho Arthur, para, em seguida a casa do “tie Dió”.

A dis­tân­cia de Gov­er­nador Archer ao Cen­tro Novo era duas léguas, mas como não haviam estradas era como se fosse bem mais. Ao avis­tar a casa de “tie Dió”, sabíamos que está­va­mos em casa.

A casa de “tie Dió” era uma casa grande com um amplo alpen­dre com piso de cimento queimado, que para alcançar pre­cisamos subir alguns degraus. Além do alpen­dre o imóvel pos­suía dois ambi­entes, a parte res­i­den­cial e a parte com­er­cial, uma qui­tanda, com enorme bal­cão de madeira e prateleiras onde se colo­cava de tudo, arroz, sardinha, man­teiga, café, far­inha, açú­car, diver­sos tipos de bebidas alcoóli­cas, fumo de rolo, cig­a­r­ros, querosene, tudo ali sep­a­rado numa mis­tura de aro­mas úni­cas. Sobre o bal­cão um vis­tosa bal­ança de dois pratos onde eram pesadas as com­pras: um kilo de arroz, uma quarta de café, meio quilo de fumo e por aí se ia. Tudo pesado e embrul­hado em um papel grosso que era cor­tado com uma régua de madeira.

Ao lado da casa de tio Deolindo, seguindo o mesmo padrão, a casa de prima Clarice.

No lado oposto da estrada, um pomar com fru­tas diver­sas, com destaque para as mangueiras, tendo ao cen­tro um poço, na ver­dade um cacim­bão redondo com uma borda quase um metro de altura bem cimen­tada em cimento queimado, a água era reti­rada com a ajuda de uma linda gan­gorra, onde se enrolava uma corda de cân­hamo.

O poço da comu­nidade já era um local nato de encon­tro. Os viz­in­hos chegavam com suas latas para reti­rarem a água que levariam para coz­in­har ou beber. Em torno do poço, enquanto um vai tirando a água e outro aguarda a vez vai se tro­cando infor­mações sobre o dia a dia, a col­heita, o que se fez ou que se deixou de fazer.

O poço de “tie Dió”, emb­ora não fosse comu­nitário, tinha esse papel. Já o poço da casa de meu pai, por ser um pouco mais para den­tro da pro­priedade era uti­lizado basi­ca­mente por nossa casa e por uns poucos viz­in­hos. Era tam­bém uma cacimba toda revestida em madeira e mais pro­funda Igual­mente pos­suía uma gan­gorra em madeira tra­bal­hada.

Esse con­junto era o cen­tro cul­tural do Cen­tro Novo. Durante o dia as pes­soas ficavam por lá con­ver­sando, mas para a noite, ficavam no alpen­dre ou den­tro da qui­tanda, onde toda hora chegava alguém para com­prar algo ou tomar uma dose con­haque ou cachaça da terra.

Sem­pre tinha gente pela qui­tanda, pelo alpen­dre ou sob a som­bra das árvores do pomar.

O mel­hor momento do ano era durante as férias.

Era por ocasião das férias esco­lares que todos voltavam para o Cen­tro Novo, os que estu­davam em Gov­er­nador Archer, os que estu­davam em Gonçalves Dias e, prin­ci­pal­mente, aque­les que estu­davam em Pedreiras. Esses além, voltarem traziam as pri­mas e pri­mos já rad­i­ca­dos por lá para pas­sarem as férias no Cen­tro Novo.

Eram dias inteiros de brin­cadeiras, de pas­sar­in­hadas, de ban­hos nos ria­chos e açudes, de pas­seios.

As noites, até o cansaço chegar, eram gas­tos com brin­cadeiras de roda, queimado, caí no poço, cão-​cão, esconde-​esconde …

Eram momento em que os maiores já se aproveitavam para um flerte mais furtivo ou para ensa­iar um namoro com a prima ou primo, roubar um beijo, etc.

Quando coin­cidia de apare­cerem pelo Cen­tro Novo em junho a ale­gria era maior, acendia-​se as fogueiras e os vas­tos ter­reiros rig­orosa­mente limpos eram ilu­mi­na­dos enquanto a cri­ançada brin­cava até tarde da noite, enquanto assavam milho ou batatas.

Fui dos últi­mos a ir para escola por conta da poliomielite, achavam que não estava preparado para morar na cidade, por conta disso ficava ainda mais ansioso enquanto esper­ava os irmãos voltarem para darem um pouco de “movi­mento” para o Cen­tro Novo.

Ainda vindo na estrada, do mesmo lado da casa de “tie Dió” ficava a casa de tia Chiquinha e a frente a casa de seus fil­hos e out­ros par­entes.

Mais adi­ante ficava nossa casa. A casa dos meus primeiros dias e da minha infân­cia. Onde fui tão feliz e tão triste ao mesmo tempo.

Na última vez que estive no Cen­tro Novo percebi que muito do que nar­rei nesse e em tan­tos tex­tos só existe nas min­has lem­branças.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado, escritor, cro­nista.

A deserção amer­i­cana e a falta que Churchill faz.

Escrito por Abdon Mar­inho

A deserção amer­i­cana e a falta que Churchill faz.

Por Abdon C. Marinho.

QUANDO cri­ança, logo após ser alfa­bet­i­zado, lia muito. Estava sem­pre com um livro ou uma revista na cara lendo. Lia tanto que os mais vel­hos diziam que acabaria cego por “gas­tar” tanto a vista com leituras. Havia até um certo incô­modo com esse meu hábito. Não raro lia escon­dido para fugir das chateações. Aquilo que hoje os pais mais pre­ocu­pa­dos dizem aos fil­hos: — menino, larga esse celu­lar! Diziam a mim em relação aos livros.

Foi por essa época que “con­heci” o termo deser­tor. Nos livros de histórias de guer­ras ou de con­quis­tas, o termo tinha um sen­tido ímpar de gravi­dade. Alguém sobre que, recaia tal acusação, se descoberto pode­ria ser morto; se preso iria à corte mar­cial podendo ser con­de­nado à morte por crimes de guerra.

Hoje, imag­ino que não seja mais assim. Mesmo no Código Penal Mil­i­tar a pena por deserção é até branda. Acred­ito que só em caso de guerra externa, con­forme pre­vista na Con­sti­tu­ição, seja admi­tida a pena de morte – mas nem por isso.

Pois bem, faço tal intro­dução para aden­trar ao ver­dadeiro tema.

Em texto ante­rior afirmei de forma bem clara que o com­por­ta­mento do gov­erno amer­i­cano em relação à guerra na Ucrâ­nia era uma des­onra – con­tinuo afir­mando isso.

O clima de polar­iza­ção política que sacode o mundo fez com que muitos me crit­i­cas­sem por tal afir­mação. Mas, como disse, isso se deve ao clima de polar­iza­ção política. Esse clima é tão danoso que as pes­soas par­tidarizadas não con­seguem enx­er­gar o óbvio. Se fulano é da minha facção política ainda que mate alguém sem motivo a culpa jamais será dele mas sim do morto.

A des­onra da Casa Branca em relação ao que se passa na Ucrâ­nia é que ela pas­sou a cul­par a vítima pela guerra. Ao dizer que a Ucrâ­nia não quer a paz e joga com a escal­ada do con­flito ignora que a Ucrâ­nia é uma nação sober­ana que foi inva­dida por outra nação sem qual­quer jus­ti­fica­tiva plausível ou vál­ida.

Não é pos­sível falar em paz sem se par­tir do pres­su­posto que as fron­teiras nacionais pre­cisam – e devem – ser respeitadas.

Abro um parên­tese ape­nas para reg­is­trar a curiosa situ­ação dos “fac­ciona­dos” brasileiros: tatos os ditos de dire­ita quanto os ditos de esquerda, estão, enver­gonhados ou não, apoiando a invasão russa. Só para reg­is­trar que no fundo não diferem muito uns dos outros.

Falar que a vítima é respon­sável pela guerra equiv­ale dizer que você, cidadão comum, é respon­sável ou “cul­pado” por rea­gir con­tra out­rem que invade sua casa, começa a destruir seu mobil­iário e a matar seus par­entes.

No patético “bar­raco” ocor­rido na Casa Branca e que motivou aquele texto foi isso que os amer­i­canos dis­seram, pelas bocas dos seus diri­gentes (pres­i­dente e vice-​presidente).

E foram além. Com a des­culpa de que a vítima não quer a paz ou seja, se deixar matar den­tro de casa, infor­maram a sus­pen­são da ajuda que prestam aquele país no esforço de guerra.

E, pode ser pior, querem cobrar dez vezes mais aquilo que já apor­taram no con­flito.

O meu entendi­mento – e não peço escusas aos que dis­cor­dam –, é que sobra ambição e falta caráter aos gov­er­nantes americanos.

Em se man­tendo a sus­pen­são de ajuda a Ucrâ­nia em guerra entendo que o termo mais ade­quado em relação aos amer­i­canos é deser­tores.

Essa sus­pen­são, quando se sabe da dependên­cia mil­i­tar da Ucrâ­nia em relação aos EUA, sig­nifica, na ver­dade, uma mudança de lado, um alin­hamento ao país inva­sor.

Essa deserção não é uma retórica política ou um arroubo. No doc­u­mento que junto ao pre­sente texto (ape­nas a ver­são em inglês), con­sta que os Esta­dos Unidos da Amer­ica se com­pro­m­e­teram a garan­tir a segu­rança da Ucrâ­nia e a garan­tir a sua sobera­nia e inte­gri­dade ter­ri­to­r­ial, esta­b­ele­ci­das e recon­heci­das no ano de 1994.

O doc­u­mento, chamado de Mem­o­rando de Budapeste, tem o com­pro­misso do gov­erno amer­i­cano, do Reino Unido e da Rús­sia em respeitarem as fron­teiras, não pro­movem vio­lação ter­ri­to­r­ial ou coesão econômica con­tra aquele país.

Não sei se é porque estou ficando velho – sou do tempo em que com­pro­mis­sos se hon­rava ape­nas com a palavra –, que acho que os amer­i­canos não têm o dire­ito de igno­rarem um com­pro­misso de gov­erno e aban­donar um país em guerra. Na minha rede social até disse que o gov­erno ucra­ni­ano pode­ria (dev­e­ria) acionar a Justiça Fed­eral Amer­i­cana cobrando o cumpri­mento do con­trato de 1994. As assi­nat­uras de Bill Clin­ton em todas as ver­sões do doc­u­mento é a com­pro­vação mais que necessária para que os amer­i­canos sejam com­peli­dos a hon­rarem a palavra dada e o acordo assi­nado. Tal acordo obriga qual­quer gov­erno, com um mín­imo de decên­cia, a hon­rar. Tratou-​se de com­pro­misso do país.

Noutra quadra, a própria Europa já deve está sentindo na “pele” o equívoco de ter deix­ado sua segu­rança em mãos amer­i­canas com base em com­pro­mis­sos que remon­tam ao tér­mino da Segunda Guerra Mundial.

A Ucrâ­nia paga o preço (alto) por ter con­fi­ado que bas­taria um con­trato assi­nado por todas as grandes potên­cias mundi­ais para ter asse­gu­rado sua inde­pendên­cia, sobera­nia e respeito aos seus lim­ites ter­ri­to­ri­ais ajus­ta­dos. Se tivesse man­tido sua capaci­dade bélica intacta, inclu­sive com armas nucleares, cer­ta­mente não estaria tão vul­nerável como se encon­tra hoje.

Con­fiou na Rús­sia, con­fiou nos EUA, con­fiou no Reino Unido… agora sofre as con­se­quên­cias enquanto os dois primeiros “tra­mam” para saber quem fica com maior fatia do butim.

Há trinta anos, por ocasião desse acordo, alguém me aler­tou da grande tolice que estava come­tendo tanto a Ucrâ­nia quando os demais países que aceitaram entre­gar suas armas para a Rús­sia.

A Europa tam­bém se ressente do fato de não pos­suir nen­huma lid­er­ança com a estatura de Win­ston Churchill, que, em deter­mi­nado período durante a Segunda Guerra Mundial, a sus­ten­tou prati­ca­mente soz­inha. A sua for­t­aleza de caráter e de princí­pios impediu que assi­nasse acor­dos e pactos com os nazis­tas.

Emb­ora se trate de uma obra de ficção, o filme “O Des­tino de Uma Nação”, acho, que de 2018, retrata muito bem a importân­cia de Churchill para o des­tino daquela guerra


Esse vazio de lid­er­ança faz com que a Europa não con­siga rea­gir de forma ráp­ida e uni­forme a qual­quer hos­til­i­dade ou das besteiras que se pro­fere desse lado do atlân­tico dia sim e no outro tam­bém.

Final­mente parece ter enten­dido que a segu­rança de cada um daque­les países não pode mais ficar longe do seu próprio con­t­role.

Para a des­graça do mundo e das futuras ger­ações, ter­e­mos que con­viver ainda durante muito tempo – ao invés de nos pre­ocu­par­mos com a sal­vação do plan­eta –, com o axioma: queres paz, este­jas preparado para a guerra.

É uma lás­tima, mas, infe­liz­mente m é o que nos resta.

Abdon Mar­inho é advo­gado.

P.S. Segue abaixo a ver­são inglesa do Mem­o­rando de Budapeste assi­nado em 5 de dezem­bro de 1994.